“Uma”

Um Conto de Fantasia Fetichista

por Anima Orlando

(Gênese da História e Introdução)

togethernessfetish@gmail.com


1. As Bailarinas na Penumbra

“Desde quando é obcecada por irmãs siamesas?”

Valentina Vexley virou-se de súbito. A pergunta, ainda que esperada, veio tão à queima roupa que, por um instante, chegou a perder a pose tão cuidadosamente cultivada para suas aparições em eventos públicos.

“Uau!”, exclamou, tentando ganhar tempo. A jovem à sua frente tinha uma aparência tão desconcertante quanto a dela própria. Mesma idade, mesma altura. Roupas, cabelo e adornos um verdadeiro mosaico de cultura alternativa, que expressava em letras garrafais, para qualquer uma que, como ela, soubesse ler os códigos, um interesse fetichista profundo e relativamente bem resolvido. Valentina estudou com cuidado aquele rosto pálido, agora que tinha a chance de fazê-lo mais de perto, os lábios negros a la boneca gótica, os piercings estrategicamente tão bem colocados quanto os seus, o cabelo que descia quase até a cintura do lado que não estava raspado, e os ombros nus exibindo tatuagens de quem realmente sabia contar uma história a partir delas.

“Me diga você, já que temos isso em comum.” respondeu, erguendo a taça de vinho.

A moça sorriu, aliviada, e aceitou o brinde. “Já me conhecia então, né?” perguntou, com um sorrisinho maroto no canto dos lábios.

“Como não?” respondeu Valentina, depois de um gole generoso. “Astrid Velvet, renomada artista plástica, com propostas ousadas que dão um nó na cabeça das críticas (como se isso fosse difícil, né?) e a fama um tanto desconcertante - isso de acordo com as colunistas de jornal - de insistir em esculpir apenas variações de figuras humanas…”, caprichou na pausa dramática e encarou profundamente os olhos negros da moça, “...siamesas.”

Astrid corou, mas imediatamente relaxou. “Não insisto em esculturas”, ralhou, “Tem pinturas também, instalações…”

“Performances…”, acrescentou Valentina.

“Oh, Deusa, nada comparadas com as suas”, exclamou Astrid, “Como conseguiu convencer aquelas duas a ficarem na instalação por doze horas? Amarradas juntas daquele jeito!”

“Não foi fácil”, Valentina deu de ombros, “Foi o maior cachê que já tive de pagar. Elas se odeiam, sabia? E mais ainda depois!”

As gargalhadas das duas ecoavam pela noite enquanto caminhavam juntas para longe da vernissage, quase sem se dar conta. Astrid, já bem mais relaxada, devorava sem pudor cada pequeno detalhe do visual descolado de Valentina. Os cabelos longos, as tatuagens, os trajes de couro. E, acima de tudo, aquele toque de vulnerabilidade que se deixava transparecer em meio à empáfia calculada de dômina fetichista.

“Então,” arriscou Astrid, “estava de olho em mim durante toda a vernissage, não é? Assim como eu estava de olho em você?”

“Por que acha que passei a noite toda bebendo esse vinho?”, riu Valentina, “Mas, pelo visto, você conseguiu tomar coragem antes de mim.”

“Espero não ter te constrangido.” disse Astrid, desviando dos olhos azuis que a encaravam.

“De modo algum, você me pegou num grau bom.” riu Valentina, sacudindo a taça e tomando outro gole.

“Que bom, porque não pude deixar de notar que você ainda não me respondeu.” segue-se um silêncio relativamente confortável, enquanto elas seguem caminhando até os fundos do jardim.

“Confesso,” retomou Valentina, “que tenho uma relação ambivalente com essa pergunta. Eu a adoro. Muito mesmo. Estou sempre ansiosa para que alguém a faça. Mas, ao mesmo tempo, tenho medo, porque quase sempre é feita com uma intenção ruim.”

“Nem me fale”, suspirou Astrid. Elas seguem em silêncio.

“Mas sabia que de você não precisaria ter medo.” admitiu Valentina, enfim, “Não com tudo o que sei sobre você e o seu trabalho.” ela riu, “Só achei que teria a coragem de perguntar primeiro.”

“Eu não sei.”

“O que?”

“Não sei desde quando sou obcecada por irmãs siamesas.”

Valentina a encara profundamente, enquanto caminham.

“A impressão é que desde que me conheço por gente.” diz Astrid, com firmeza.

“É a mesma coisa comigo”, Valentina admite, após uma pausa.

A caminhada termina numa fonte, numa área relativamente escura do jardim. No centro da fonte há uma grande escultura, feita de chumbo. Duas bailarinas, nuas e congeladas em meio à uma evolução ampla, de equilíbrio complexo e gracioso, conectadas entre si pela região de suas pélvis.

“É sua, não é?” perguntou Astrid.

“Algo me diz que já sabe disso.” Elas riem e Valentina continua: “É uma das primeiras. Já nem trabalho mais com essas técnicas.”

“Li uma crítica que dizia que a semelhança com seus trabalhos posteriores é coincidência. Que isso é apenas uma representação simbólica da dança.”

“Ai… críticas! Sempre perdendo o óbvio!” elas riem. “Mas sabe… o lance não é as irmãs siamesas... não exatamente.”

“É a união em si, não é?”, complementou Astrid, ainda olhando para as bailarinas. “Se são irmãs siamesas ou não… é só incidental.”

“Sim…” murmura Valentina, também olhando para as estátuas, “E irmãs siamesas são um lance médico, uma deformidade,” Astrid vira a cabeça lentamente, olhando para o perfil de Valentina na penumbra, “Quase sempre têm os corpos distorcidos e problemas horríveis de saúde. E, acima de tudo…”

“Elas não escolheram.” diz Astrid, num murmúrio que quase não se queria deixar ouvir.

Valentina se volta, rapidamente, na direção de Astrid. A boca entreaberta, como se fosse dizer mais alguma coisa. Então um tipo de choque atravessa ambas. Um receio instintivo de uma exposição arriscada e prematura. Num entendimento mútuo e não verbal, sequer refletido, elas mudam de assunto, tomando o máximo de cuidado para não emanar nenhum tipo de sinal atravessado de uma para a outra de que estariam numa disposição para se separar. Ao contrário, passam o restante da vernissage juntas, conversando sobre todo e qualquer assunto, de técnicas artísticas à baladas sadomasoquistas, de amigas em comum à editais de pesquisa, qualquer coisa, exceto suas obsessões. Atendiam às jornalistas e às fãs emocionadas com paciência e bom humor, esquivando-se graciosamente de perguntas indiscretas sobre o sugestivo encontro das duas artistas “taradas por irmãs siamesas.”

“Certeza que agora vocês vão grudar, não é?”, uma socialite se atreveu a perguntar.

Valentina e Astrid não responderam. Com a pompa mais do que treinada pelas futilidades do universo das artes, deram de ombros e fecharam a noite com toda a finesse, se despedindo com um abraço terno, beijinhos no rosto e contatos devidamente trocados. Não precisariam de mais do que isso.

Sabiam que era só o primeiro encontro.




2. Os Primeiras Laços

Ainda que não fosse fácil rolar um segundo. Foram semanas até juntarem coragem para se ver novamente. Uma infinidade de mensagens escritas ou gravadas e apagadas pouco antes de enviar. A lembrança das bailarinas pairava por todas as atividades do seu dia, mas ainda assim, contaminada pelo receio tão bem conhecido da exposição. Talvez tenha sido Valentina que, enfim, fechando os olhos, meteu o dedo no “enviar” (ela ainda se irritava por não ter sido ela a fazer a pergunta fatídica primeiro). Mas, no fim, tanto faz. O que importa é que entre um café e outro num bistrô qualquer, talvez depois de dois ou três encontros regados a conversas frívolas, ainda que intensamente acolhedoras, Astrid disparou:

“Não estamos flertando, tá?”

“Oi?”, disse Valentina, no meio de um gole de café.

“Só pra deixar claro. Não é pra isso que estamos nos encontrando. Nada pessoal, te acho linda e muito atraente, mas essa não é mais minha pira.”

“Dominatrixes?”, perguntou Valentina, com um sorriso malicioso, “Não é mais sua pira?”

“Sexo.” declarou com uma gravidade surpreendente. “Sexo. Namoro. Relacionamento. Tudo isso. Não é mais minha pira. Não que eu não faça, não que eu não goste… Só não basta. Não é suficiente. Estou em busca de algo além.”

Valentina colocou lentamente a xícara na mesa. A cena toda poderia ser cômica, mas de algum modo… não era. Sabiam que não. “Eu entendo.” As duas se encararam com uma intensidade que talvez sequer estivessem esperando. “Eu realmente entendo o que você quer dizer.”

“Sei que você entende.” Astrid concluiu, ainda que, no fundo, não entendesse muito bem o que queria dizer. Não ainda.

O diálogo com certeza marcou uma mudança de fase. Desde então os encontros passaram a vir sem traumas e sem maiores receios. Viam-se quase todos os dias. E, com o tempo, todos os dias. Valentina conheceu o ateliê de Astrid, onde, é claro, ela também morava. Astrid conheceu o estúdio de Valentina, onde, é claro, ela também morava. No que se referia à essência, os espaços eram basicamente idênticos. Microcosmos onde a vida cotidiana se confundia com as profundezas dos processos de criação artística. Paredes forradas de livros de referência, pinturas, esboços, croquis, o cheiro de argila mesclando-se à tinta, manchas no chão caoticamente harmônicas, conjuntos de café de louça lado a lado com velhas esculturas de formas duplas e entrelaçadas. A escolha por qual espaço passar a noite se tornou uma livre dinâmica baseada acima de tudo em conveniência, de acordo com as obrigações do dia a dia de cada uma. Não era mais preciso combinar e se acertar. Assistiam a filmes, conversavam sobre processos ou amenidades cotidianas, jantavam, bebiam, jogavam jogos de tabuleiro. Se conheciam, mais e mais. E, quanto mais se conheciam, menos vontade tinham de se despedir ao fim da noite. Embora o fizessem.

Mal se deram conta de estarem trabalhando juntas. Em vários projetos simultâneos. Esculturas, pinturas, mesclas sofisticadas entre diversas técnicas. Individualmente seus trabalhos já haviam atingido um nível de sofisticação ímpar e um senso de sensualidade que chegava a ser doloroso. A junção de suas subjetividades, em si já tão similares, deu às obras um novo, ainda que esperado, ímpeto. Algumas galerias se mostraram reticentes. Nem todo mundo compartilharia as obsessões reforçadas da recém formada dupla. Outras, entretanto, talvez com um senso de marketing mais apurado, já começavam a apresentar novas propostas às, agora apelidadas, “artistas siamesas”. Não que importasse, no fim das contas. Privilegiadas e herdeiras, ambas confortavelmente declaradas “ovelhas negras” de suas respectivas famílias, podiam se dar ao luxo de não se preocupar quase nada com o, assim chamado, sucesso comercial.

Na intensidade de seu trabalho em conjunto, não foi tão difícil superarem os últimos tabus. Logo já conversaram abertamente, e com crescente intimidade, sobre suas obsessões mais profundas. O âmago mais primordial daquilo que as movia enquanto artistas e pessoas. No aconchego de uma convicção crescente, e profunda demais para ser verbalizada, de que nada do que dissessem seria agora incompreendido. Não mais.

“É o corpo, entende?” dizia Valentina, enquanto preparava um dos seus lendários fundies. “Não me basta. Só estou eu aqui… nesse corpo. E cada uma, em todo lugar, sozinha num corpo. É difícil explicar porque pra mim é tão óbvio, eu sempre me senti assim.” Ela coloca os pratos na mesa, onde Astrid está sentada, então começa a abraçar os próprios braços, com força, os dedos deixando marcas avermelhadas na pele. “Só eu, aqui. Entende? Sim, é claro que você entende.”

“Foi uma revelação quando eu era menina e descobri que irmãs siamesas existiam.” refletiu Astrid. “Mas, claro, é como você sempre diz, não é bem isso, eu nem gosto de pesquisar muito a respeito, é muito feio… e triste.” Valentina assentiu, pegando os copos no armário. “Mas são pessoas que viveram e morreram… juntas!”

“Sim!” Valentina avançou até a mesa, debruçando-se na frente de Astrid. “A possibilidade! É possível viver assim? Algumas viveram, claro, mas porque não tinham escolha. Algumas se mutilaram, ficaram aleijadas para se separar, e tudo o que consigo pensar é, Deusa, vocês são loucas!”

Elas riem segurando as mãos uma da outra por sobre a mesa. “Oh, Deusa, eu vi um caso assim.”, disse Astrid, apertando as mãos de Valentina. “As duas podiam andar enquanto estavam juntas, e foram parar cada uma numa cadeira de rodas… e mesmo sabendo disso quiserem se separar!”

“Eu sei! Que insanidade!” gritou Valentina, chocada e rindo ao mesmo tempo. Astrid riu também e continuou, com lágrimas nos olhos, “Oh Deusa, é tão bom poder falar dessas coisas com você! Sabendo que você não vai achar que a insana sou eu.”

Valentina enxugou as lágrimas de Astrid com os dedos e sussurrou: “Talvez você seja, mas até aí eu também sou, então tá tudo certo.” e foi até a pia pegar os talheres, enquanto Astrid continuava:

“Você também tinha um crush por Daisy e Violet Hilton?”

“Oh, Deusa!” gritou Valentina, “Você sabe que sim! Elas eram lindas!” Valentina rodopiou na cozinha, colocando os talheres na mesa “E perfeitas! Quer dizer, quase, considerando todo o lance médico e tal… mas ao menos elas tinham os seus corpos inteiros, não eram deformadas e pela metade, com órgãos defeituosos e misturados. Cada uma tinha seu corpo completo… mas conectadas. Pela pélvis, não era?”

“Era mais pra nádegas e quadris, afinal estavam sempre de lado nas fotos, meio de costas uma pra outra”, refletiu Astrid. “Eu li que elas tinham as pélvis fundidas, mas nunca entendi muito bem como isso seria possível.”

“Eu também achava estranho”, admitiu Valentina, sentando-se de frente para Astrid que, imediatamente, estendeu as pernas debaixo da mesa, cobrindo os pés descalços da amiga com os seus. Um gesto que já lhes era quase automático. “Mas, enfim, é aquela história. Elas não escolherem. E, no fim, morreram envelhecidas, feias e doentes.”

“Sim,” refletiu Astrid, enquanto se servia, “Deveria ser melhor do que isso.”

Pode ter sido nessa mesma noite, ou em qualquer uma das inúmeras que se seguiram, no ateliê de Valentina ou no estúdio de Astrit, que as duas se viram largadas preguiçosamente num sofá, aconchegadas uma na outra, sem que nenhuma tivesse a menor disposição de ir embora ou pedir para a outra ir embora, e a intimidade crescente da conversa foi retomada como se nunca tivesse sido interrompida.

“...daí que pra me meter no rolê fetichista foi um pulo”, murmurava Valentina, “parecia a coisa mais natural a fazer. Onde mais eu teria liberdade de, ao menos, experimentar um pouquinho, sabe?”

“Sem ser julgada…”, completou Astrid, “Sim, claro que entendo, comigo foi a mesma coisa. Mas tem suas limitações, né? Mesmo entre essa galera, o nosso tipo de pira não é bem uma coisa popular.”

“Não… quer dizer…”, continuou Valentina, “Até rola, mas é uma experiência. Uma de muitas. A fissura é outra.”

“A galera do bondage quer dominar ou ser dominada. As meninas do shibari piram nas cordas em si, na restrição dos movimentos.” refletiu Astrid.

“Isso”, Valentina olhou diretamente pra ela, “E eu não quero me restringir! Ou restringir ninguém. Eu quero me libertar… de mim mesma.”

“Sozinha em si mesma”, sussurrou Astrid, “Libertar a si mesma… em outra.”

“Se libertar juntas…” o tom de voz de Valentina foi ainda mais baixo e, por um longo tempo, nenhuma das duas falou. Era sempre assim quando um âmago mais sensível de cada uma se expunha ao ponto de quase se tocarem. Mas os silêncios eram mais e mais confortáveis.

“De qualquer forma”, Valentina continuou, por fim, se re-ajeitando no sofá enquanto o corpo de Astrid se re-aconchegava à sua nova posição de uma forma quase instantânea, “Acabou sendo mais fácil cultivar a fama da dômina que adora amarrar as suas subs juntas. Elas curtem, sabe? Desde que o foco seja obedecer a dona.”

“E não necessariamente dividir a atenção com sua irmã de coleira.” riu Astrid.

“Céus, irmãs de coleira!”, Valentina escondeu o rosto com a mão. “Não conheci um par que não acabasse brigando, sabia? Como as meninas das minhas performances. É questão de tempo!”

“No fim das contas”, declarou Astrid, “Até a galera mais extrema é apegada demais à sua própria individualidade.”

“Talvez mais ainda”, considerou Valentina. “Claro que você já encontrou… parceiras… para experiências, né?” perguntou.

Astrid suspirou profundamente: “Já fiquei acorrentada numa menina uma noite inteira.” soltou, “Dormimos juntas assim. Mas é como você disse, a negociação era em torno da restrição, ela curtia se sentir presa. Podia ser presa a mim, podia ser presa ao pilar da cama, tanto faz.”

“Uau!”, exclamou Valentina, “Que forma de colocar as coisas!”

“Você sabe como é!” Astrid riu, mas continuou num tom mais sério. “Nunca esqueço da expressão dela quando terminei de nos soltar das correntes na manhã seguinte.” Valentina se virou para ela, prestando atenção. “Ela ficou assustada. Não disse nada, mas eu vi que ficou. Ela… sentiu… o que aquilo significava pra mim.” Astrid deu de ombros, “Acabou aí. Continuamos nos vendo, por um tempo. Mas acabou aí.”

“Gostava muito dela?”, perguntou Valentina.

“Na real, não.”, riu Astrid. “Era só alguém que topou.”

Valentina levantou, até se sentar no sofá, puxando Astrid gentilmente pelas mãos. As duas ficaram sentadas uma de frente para a outra, pernas cruzadas se tocando, de mãos dadas. Olhos nos olhos, em contato profundo.

“Tri…”

“Val…”

Nenhuma das duas continuou. Não era preciso. Ambas sabiam o que estavam pensando. Que não poderia ser de outra forma, ou com outra pessoa, e que não poderiam deixar essa oportunidade passar, por mais assustador que fosse, por mais insano que fosse, ou nunca mais teriam outra chance e passariam o resto de suas vidas imaginando como poderia ter sido. 

Elas ficaram ali, apenas se olhando, por um longo tempo, cada vez mais admiradas com o fato de que nenhuma das duas parecia sentir a menor necessidade de desviar os olhos dos olhos da outra. Naquele momento, elas se viram. Realmente se permitiram a se ver. Para além da beleza física que ambas compartilhavam, para além daquela misteriosa harmonia de gesto e movimento, a simetria entre seus corpos, que tantas colunistas de moda e críticas de arte não deixaram de reparar nas suas aparições públicas. Tudo parecia certo. Tudo parecia apropriado. E a implicação era tão profunda que lhes tirava o fôlego, e meras palavras não poderiam dar conta. Elas tinham que tentar. Tinham que tentar.

“Tem que ser você.”

Semanas depois, o microcosmo da arte foi sacudido pelo anúncio da mais recente obra das excêntricas “artistas siamesas”, Astrid Velvet & Valentina Vexley. Uma performance a ser realizada numa apresentação única, em uma das mais renomadas galerias alternativas do circuito boêmio. Obra sem título ou flier, sustentada só pela curiosidade já estabelecida pela fama prévia das performers. Ingressos limitados, cortesias estrategicamente distribuídas, vinho, comes, pompa e circunstância. O espaço rapidamente preenchido por uma fauna de figuras exóticas, do tipo que sabe muito bem como ao menos parecerem sofisticadas. Todas no aguardo pela aparição das anfitriãs que, quando veio, foi quase sem alarde.

Astrid apareceu calmamente na entrada leste do salão. Valentina na entrada oeste. O pé descalço de uma tocando o piso de madeira no exato instante do pé descalço da outra, o direito no caso de Astrid, o esquerdo no de Valentina. Olhos fixos nos olhos uma da outra, separadas apenas pela extensão de quinze metros de salão, ignorando solenemente as atenções da plateia que vai, pouco a pouco, notando a sua presença. Elas caminham, um passo de cada vez, um deslizar lento e contínuo, perfeitamente sincronizado, que nenhuma das presentes acreditaria que não foi ensaiado até a exaustão.

A cada passo, o silêncio se torna mais absoluto. Mesmo aquelas mais desesperadas para achar graça em tudo se vêem tomadas por uma sensação estranha e inexprimível. A consciência de que tem alguma coisa acontecendo, algo que nunca aconteceu antes. Os olhares se voltam para uma, depois para a outra, cada vez mais próximas, ambas trajadas com um vestido simples, de tecido leve e cor da pele, que deixa exposto o braço e o ombro direitos de Valentina, e o braço e o ombro esquerdos de Astrid. As faces de ambas, expressando o que só poderia ser descrito como uma doce e suave antecipação.

Elas adentram o tapete circular vermelho no centro do salão precisamente à meia-noite, e se posicionam de joelhos diante da mesinha ali colocada, os braços nus estendidos à frente, lado a lado, palmas sobre a mesa, dedos se tocando. Com as mãos livres, elas apanham o conjunto de cordas especiais para a prática de shibari, ricamente trabalhadas para serem tão fortes quanto suaves ao contato com a pele, e começam a trabalhar nos braços sobre a mesa, diante do escrutínio atento e fascinado da audiência. As mais atrevidas se aproximam o máximo que podem, sem ousar violar a intimidade do círculo, observam admiradas os movimentos leves e precisos da mão esquerda de Valentina e da mão direita de Astrid enquanto trabalham em uníssono, como se fizessem parte de um mesmo corpo, enlaçando e amarrando, unindo seus braços nus apoiados sobre a mesa, do pulso ao antebraço, em laçadas complexas e entrelaçadas que as fetichistas e entendidas do salão não deixam de reconhecer como um padrão oriental cuidadosamente pensado para se manter firme e estável sem apertar demais, a ponto de cortar a circulação, mas, ao mesmo tempo, com tamanha resistência que seria praticamente impossível rompê-lo sem a ajuda de uma lâmina.

Um leve toque da chama de um isqueiro para fundir as pontas da última laçada e o trabalho estava concluído. Sorrindo uma para a outra, Valentina e Astrid enchem as taças de vinho que aguardavam nos cantos da mesa e, erguendo-se, oferecem um brinde silencioso para a audiência, que aplaude efusivamente enquanto cruzam os mãos com as taças e bebem ao mesmo tempo, olhos nos olhos, com os braços atados delicadamente flexionados entre elas, apoiados junto aos seios.

Quebrado o encanto, a noite prossegue de acordo com os clichês de sempre. Abraços e cumprimentos, muitos até sinceros, fotografias, poses para selfies, uma enorme quantidade de jovens fascinadas pedindo para ver de perto e, quem sabe, tocar os padrões trançados nos braços unidos, que as artistas não se importam de exibir com um orgulho discreto. Aqui e ali, em cantos mais afastados, começam a aparecer os primeiros murmúrios de que tudo aquilo, afinal, não tinha sido nada de mais. “Então, as ‘artistas siamesas’ se amarraram juntas, que original!” Astrid e Valentina não ouviram essas conversas e nem ligariam se ouvissem. Só elas sabiam que teriam realizado a performance mesmo para um salão vazio. Antes das duas da manhã já tinham partido, tão discretamente quanto haviam chegado.

E no meio da multidão, apenas Carla, uma velha amiga de Valentina que, como todas, mal tivera a chance de dar um “oi” em meio à movimentação, reparou num detalhe curioso a respeito dos vestidos que as duas estavam usando. Um detalhe sobre o qual ela se pegaria pensando com muito mais frequência do que teria imaginado, nos intervalos de trabalho no laboratório, nos meses que se seguiriam.

O design parecia ter sido cuidadosamente pensado, para que os vestidos pudessem ser despidos sem perturbar as amarras que uniam as duas artistas.




3. Os Dias Bons, os Dias Ruins

E foi justamente sem perturbar as amarras que Astrid e Valentina deslizaram para fora dos vestidos assim que entraram na casa de campo que seria o seu lar e local de trabalho de agora em diante. Adquirida, em parte, com os recursos da venda dos respectivos ateliês, somados a um faturamento até razoável dos ingressos e patrocínios da performance que só elas sabiam que seria a última. Fazia sentido dar início às suas novas vidas num espaço novo, que reunisse em si as obras e acúmulos de vida das trajetórias de ambas até aquele momento. Em silêncio, caminharam pelos cômodos suavemente iluminados por luminárias indiretas, contornando as caixas da mudança ainda por organizar e ouvindo o tilintar dos grilos que preenchia a noite estrelada lá fora. Entre um passo e outro, cada uma se sentia puxando e sendo puxada pelo braço atado ao da parceira, num misto de sensações inéditas e complexas. Havia medo e excitação. Conforto e desconforto. Dúvida e júbilo.

“Somos doidas?” disse uma delas, por fim.

“Se somos”, respondeu a outra, “Ao menos somos doidas juntas.”

Elas se aproximaram ainda mais uma da outra, observando os antebraços atados erguidos entre elas. Olharam-se nos olhos e um arrepio profundo as atravessou. Era pra valer. Estavam mesmo fazendo isso.

“Com fome?” soltou uma delas, subitamente.

“Nem!”, respondeu a outra, “Estou é bêbada!”

As duas riram, num alívio aconchegante. “Vamos dormir então, amanhã será um dia cheio!”

E, conversando sobre amenidades, as duas foram ao banheiro para fazer a toilette que, a essa altura, já estavam mais do que habituadas a fazer juntas, mesmo sem estarem atadas, e terminaram a noite na cama de solteira que haviam recentemente comprado.

Muito havia, de fato, para preencher os seus dias. Uma nova casa para decorar, uma rotina de trabalho a restabelecer, uma experiência de vida inédita a desenvolver. Muita coisa havia sido antecipada naquelas semanas de preparação prévia, como a necessidade de secar as cordas com o secador de cabelos depois de cada banho e as dificuldades para coordenar os movimentos nas primeiras tentativas de atividades complexas, como esculpir e cozinhar. Sabiam que, eventualmente, as cordas teriam que ser substituídas devido ao desgaste, e um de seus grandes receios era que o breve momento de separação desencadeasse algum tipo de gatilho que faria desandar toda a experiência. Por outro lado, estavam cientes da possibilidade de fadiga por estarem sempre unidas pela mesma parte do corpo, por mais aparentemente “adequados” que os pulsos e antebraços parecessem ser a esse propósito.

“Fala a verdade”, perguntava Astrid enquanto as duas passavam mais uma demão de tinta nas paredes do estúdio, “Ao invés de brincar de papai e mamãe você convencia as suas amiguinhas de que ladra e polícia era muito mais legal.”

“Olha quem fala!” ria Valentina, toca respingada de tinta. “Não venha me dizer que algemas de plástico não foram o seu primeiro brinquedo também? Eu tinha uma coleção!”

“Se quer saber, não foram não.” Astrid declarou, em tom de deboche. “Eu tinha era uma coleção de Barbies… todas devidamente fundidas aos pares”, virou-se dramaticamente para Valentina, “E nas posições mais exóticas!”

“Uau! Conte-me mais, baby!” exclamou Valentina, com ar de escandalizada.

“Mas sim,” admitiu Astrid, “saber que existiam algemas foi uma revelação tão grande quanto descobrir sobre as siamesas. Mas eu era tímida demais pra propor essas coisas pras amiguinhas.”

“Eu fazia isso o tempo todo!” disse Valentina, “Já era meio dômina desde pequenininha”, as duas riram, “Mas no fim acabava sendo meio traumático… Eu nem gostava tanto assim das meninas que me davam a chance de me algemar junto.”

“Obrigada pela parte que me cabe”, Astrid declamou, com uma exagerada mesura.

A conversa desembocou, depois de um banho e um pote de bolinhos de chuva com café, nas duas jogadas num enorme puff, com os cabelos e as cordas ainda ligeiramente úmidos, recobertas com os velhos álbuns de infância recém tirados das caixas.

“Minha Deusa, olha só pra você!”, dizia Valentina apontando para a pequena Astrid, olhando para a câmera com cara de muito séria. “Que coisa mais fofa!”

As duas riam e se deixavam perder em meio às relíquias de um passado nem tão distante, intimamente refletindo o quanto tudo aquilo parecia simultaneamente absurdo e correto. As pernas confortavelmente emaranhadas entre si. Foi Astrid que, do nada, apontou uma foto e disse: “Val, que posição é essa?”

Valentina estudou a foto com atenção. De fato, ela estava numa posição estranha, como se estivesse meio desequilibrada. Não era aquele desengonçar habitual de adolescente. “Que estranho… eu pareço apoiada em algo que não está lá, não é?”

Astrid concordou e pegou outra foto ao acaso. Havia a mesma impressão de desequilíbrio em várias fotos de Valentina, particularmente da adolescência em diante.

“Não sou só eu”, comentou Valentina, “Dá uma olhada em você ali.” De fato, Astrid notou a mesma postura estranha nas suas próprias fotos, admirando-se de nunca ter notado antes. Era como se faltasse algo nas fotos, algo relacionado às poses nas quais ela havia sido fotografada.

“Não é possível…” murmurou Valentina, segurando lado a lado uma foto de Astrid e uma sua. “Quantos anos você tinha aqui?”

“Quinze”, respondeu. Valentina se empertigou e, com cuidado, começou a dobrar as duas fotos de modo a destacar as imagens de si mesmas em relação aos respectivos fundos. Posicionou-as, então, uma ao lado da outra, e as duas figuras se harmonizaram como as peças de um quebra-cabeças. A sensação de desequilíbrio se foi.

“Eu também tinha quinze.” murmurou. As duas ficaram em silêncio, pasmas, olhando para as fotos. Os dedos de suas mãos atadas se entrelaçaram com ainda mais força.

A noite terminou com a montagem de um mural, colocado em um lugar de destaque na sala de estar. Um mural de fotos recortadas das pequenas Valentina e Astrid, em várias idades e posições diferentes, combinadas aos pares e fixadas em papel cartão. Quem quer que olhasse as fotos desavisadamente, sem atentar para o recorte dos contornos e respectivas junções, não teria a menor dúvida de que as duas meninas haviam posado juntas diante da câmera, em uma infinidade de fotos diferentes.

O mural acabaria por se tornar uma base de apoio para os inevitáveis momentos ruins que elas sabiam que mais cedo ou mais tarde viriam. Desentendimentos entre elas sempre foram impressionantemente raros, tanto antes quanto depois da união, mas um certo mal estar se instalava sempre que uma amiga próxima parava de responder suas mensagens depois de reencontrá-las em alguma ocasião, e constatar, abismada, que as amarras da performance ainda estavam lá. Elas nunca fizeram segredo do que pretendiam fazer, ainda que tampouco alardeassem. A própria escolha pela casa de campo tinha mais a ver com um desejo de concha, para melhor explorar a experiência, do que com qualquer tentativa real de ocultamento. Foram poucas que de fato se afastaram, mas algumas tinham sido particularmente inesperadas. O bastante para abalar aquele delicado equilíbrio de fé que se sustentava entre (e através) delas.

“Isso é doentio?” elas se perguntavam. Não com frequência, mas quando esse tipo de golpe calhava de atravessá-las nos momentos mais delicados demandados por seu nível absurdo de intimidade. Fosse na rotina mensalmente sincronizada de absorventes e coletores, ou na quebra inesperada de um desarranjo intestinal que, desafortunadamente, se abatesse sobre apenas uma das duas. Mas a pergunta não envenenava se fosse feita externamente. Era quando a dúvida não achava forma de expressão que suas almas pareciam se desconectar enquanto seus corpos permaneciam unidos. E era aí que vinha a dor. Tanto de dentro, quanto de fora, na forma de câimbras e espasmos.

“Val, Val, tá doendo!” Astrid gritou numa certa noite, as duas sentadas de costas uma para a outra na cama, os braços unidos torcidos numa tentativa vã de aliviar a tensão nervosa.

“Eu sei, eu sei… ai… Deusa!” Valentina trincava os dentes, entre lágrimas. “Quer… quer soltar as cordas?” a pergunta fora feita numa voz baixa e firme, que não conseguia ocultar totalmente um tremor, “A gente pode refazer depois…”

“Não!” gritou Astrid no exato instante em que, mentalmente, se preparava para dizer “sim”. Valentina sentiu o grito reverberar em seu corpo, como se tivesse partido dela própria.

“Não”, Astrid repetiu, dessa vez num tom mais baixo, respirando pesadamente. As costas das duas, encharcadas de suor, pressionavam-se juntas com mais força, até que as duas começaram a inspirar e expirar em uníssono, de forma paulatinamente mais compassada, os nervos pouco a pouco relaxando. E, conforme a dor ia cedendo, elas foram se deixando deslizar pela cama até deitarem de novo, ainda de costas, cabelos se misturando, as peles praticamente grudadas. Astrid se encolheu e dobrou as pernas sob o corpo até que seus pés encontraram as solas dos pés de Valentina, que gemeu, aliviada, ao sentir o contato.

“Sobrevivemos”, expirou Valentina.

“Nós somos imortais”, suspirou Astrid.

E dormiram até o amanhecer.



4. Com uma Pequena Ajuda da Miga

“Tá, eu sei que essa é uma pergunta idiota antes mesmo de perguntar”, começou Carla, voltando a sentar na escrivaninha, “mas até quando vocês pretendem continuar com isso?”

Valentina deu uma risadinha, apoiando o rosto com a mão direita livre. Astrid flexionou o punho direito que Carla havia acabado de examinar, chacoalhando junto o braço esquerdo de Valentina de forma propositalmente cômica.

Carla suspirou, “Bom, ao menos estão tendo o bom senso de variar os braços. Não foram esses que vocês amarraram na apresentação, não é?”

“Já trocamos umas duas ou três vezes.” comentou Valentina. “E as cordas são novas também.”

“Mas as câimbras acabam voltando e isso nos têm feito hesitar em experimentar outras coisas”, Astrid completou rapidamente. Valentina olha pra ela com uma expressão de “Ei!”

“Xi”, zombou Carla, recostando-se na poltrona. “Estou captando um abalo na harmonia das irmãs siamesas?”

“Sem abalo.” diz Valentina, “Só queria evitar que você enchesse o saco, te conheço”.

“Mas seria bom a gente ter alguma orientação”, queixou-se Astrid.

“Tá, tá!” Carla levanta as mãos, num gesto de paz, “Que outras coisas?”

Astrid abre a boca formando um “Bom…”, e aí hesita, olhando para Valentina, que dispara a rir, cansada de fingir que não está se divertindo com a situação.

“Não olha pra mim, você começou.” diz, com lágrimas nos olhos.

“Ok,” Astrid respira e faz uma pausa, reunindo as palavras. “É o seguinte, Dra. Carla…”

“Só Carla, pelo amor da Deusa.” exclama Carla, “Quem se amarra numa das minhas amigas mais queridas, é minha amiga também.”

Astrid relaxa de vez, “Ok… Carla… O lance é: eu a a Val não temos a mínima intenção de nos separar, seja num futuro próximo ou distante. E quero dizer, fisicamente.” faz uma pausa, enquanto Carla assente, “Dito isso… há possibilidades que nós gostaríamos de tentar dentro dessa… experiência.” Valentina sorri, observando Astrid se expressar, “O corpo traz possibilidades, entende? Tanto por questões de praticidade, quanto… bom, pelo prazer da… coisa.”

Carla arregala os olhos e faz um “oh” com a boca, se fingindo de escandalizada.

“Em suma,” corta Valentina, “Estamos cansadas dos pulsos, queríamos experimentar outras partes do corpo.”

A doutora dá uma batida de palmas, e solta um curto “Uhu!”

“Trocando em miúdos, é isso.” completa Astrid. Ruborizada, mas se divertindo.

“Falando sério agora, Carla,” começa Valentina, inclinando-se na cadeira, “Você não precisa aprovar. Não precisa entender. A Deusa sabe que nem a gente entende às vezes.” ela respira fundo, antes de prosseguir num tom mais grave, “Mas a gente tá bem. Sério mesmo. Você me conhece de muitos rolês e sabe…”, deu uma curiosa ênfase à palavra, “o quanto isso é importante pra mim. Eu nunca estive tão bem. Nós…”  ela olha pra Astrid, que sorri de volta, “nunca estivemos tão bem.”

Carla assente, silenciosamente, encarando a amiga. Um turbilhão de pensamentos parece passar pela sua cabeça, mas ela espera até que Valentina continue.

“Todavia,” retoma ela, “nós não estamos satisfeitas. Não é só a questão das câimbras, é mais profundo. O que você viu na performance foi só o começo. Quanto mais o tempo passa, mais a gente se dá conta disso. Essa coisa de shibari” ela ergue o braço atado ao de Astrid, enfatizando, “não basta. Há mais pra explorar, e seria bom poder contar com alguma consultoria médica nisso.”

“Ainda não estamos unidas o bastante”, completa Astrid, baixa e seriamente.

Carla olha repetidamente de uma pra outra, sem se incomodar em disfarçar a perplexidade em seus olhos. Ela se levanta e anda pelo consultório, até se apoiar na janela, de costas. Os braços cruzados sobre o jaleco, encarando as duas. Depois do que aparenta ser uma eternidade, ela pergunta:

“Astrid… me conta outra vez como você machucou o pulso.”

Elas se olham, por um instante, então Astrid prossegue:

“Bom, a Val estava se esticando pra apanhar uma manga que estava meio alta e, eu não sei porque, nessa hora eu inventei de olhar pra outra direção. A mangueira fica numa vertente, no limite do terreno, a terra cedeu…”

“Eu despenquei, não tinha como me segurar.” admitiu Valentina.

“E puxou o braço dela com tudo pra baixo?” perguntou Carla.

“Eu não estava esperando. Foi tudo muito rápido.” confirmou Astrid.

Carla juntou as mãos na frente da boca, respirando fundo. Então continuou.

“Gente, eu devo admitir que não tenho a menor ideia de porque vou dizer isso pra vocês.” Astrid e Valentina a encaram, perplexas, “Na real é uma grande irresponsabilidade da minha parte. Eu devia internar vocês e mandar cortar essa merda, na marra. Nem precisam me olhar assim, não vou fazer nada disso.” ela faz uma pausa antes de continuar. “Astrid, você devia ter quebrado o braço ou, no mínimo, deslocado o ombro. Você só teve uma luxação no pulso.”

“Ok”, disse Astrid, pausadamente. “Eu dei… sorte?”

“Seria uma puta sorte!” exclama Carla, voltando para a escrivaninha. “A verdade é que depois de todas essas semanas com os braços amarrados… mesmo trocando de braço… bom, já era pra vocês terem perdido esses braços.”

Astrid engole em seco, Valentina se ajeita na cadeira.

“Carla,” Valentina começa, “desculpa aí, eu sei que não somos médicas e tal, mas a gente não fez isso na louca. Tomamos todos os cuidados. Tanto eu quanto a Astrid somos feras no shibari, já éramos bem antes de nos conhecermos. E a gente pesquisou a fundo o tipo de amarra, o tipo de corda, a tensão aplicada. Tudo para ter o resultado mais seguro possível…”

“E a gente se alonga…” complementou Astrid.

“Uau! Nem quero saber como vocês fazem pra se alongar emendadas desse jeito”, Carla interrompe, “Quer dizer, até quero, deve ser interessante… Mas, Val, vamos colocar as coisas do seguinte modo: Isso aí é muito mais do que um resultado seguro. Em termos médicos, fazer o que vocês estão fazendo e só ter umas câimbrazinhas de vez em quando… meu, isso é praticamente mágico!”

Astrid e Valentina se olham, cada uma perfeitamente ciente do verdadeiro redemoinho que passa pela cabeça da outra, os corações acelerando juntos diante das implicações… e das possibilidades.

“Ok, Carla”, Valentina disfarça, guardando o redemoinho pra elas, ao menos por ora, “Onde você está tentando chegar com tudo isso?”

“Eu sei lá onde eu quero chegar!” desabava Carla. “Eu só sei que quando vocês entraram por aquela porta, eu esperava que antes que saíssem eu teria argumentos suficientes pra fazer as duas largarem mão dessa doideira. Esperava poder dizer que, se insistissem nisso, iam acabar tendo um problema de circulação ou, sei lá, no mínimo uma atrofia. Mas vocês estão esbanjando saúde! São perfeitas! Não sei como, mas são! Isso me deixa doida!

Valentina se empertiga, ajeitando-se na cadeira, enquanto Astrid respira, descruzando e recruzando as pernas.

“Bem, isso me soa como boas notícias”, comenta. Carla faz um gesto de ‘pois é’ com as mãos e Astrid abre o seu sorrisinho mais fofo: “Significa que temos nossa consultora?”

Carla dá de ombros e se permite abrir um pouco a fachada de doutora séria: “Sendo bem sincera? Não sei. Como eu disse, não tenho razões para desaconselhar vocês, visto que, aparentemente, tá tudo certo e vocês já são adultas e vacinadas,” ela dá uma espiadinha dramática por cima dos óculos, “e não me parece que alguma das duas esteja pedindo socorro em código.” As três riem, enquanto Valentina move a boca num caricato SOS. “Mas o fato é que também não sei o que aconselhar. De algum modo,  o que eu sei de anatomia não parece estar se aplicando a vocês, então não sei. Eu posso agir como se as regras valessem e tentar dar uma segurada se o nível de loucura extrapolar a escala, mas… sei lá”, ela olha de uma para a outra com um sorrisinho doce no canto dos lábios. “Sei lá… algo me diz que vocês vão ficar bem.”

As duas pulam das cadeiras, aos gritos e dão à volta na escrivanhinha para abraçar e beijar Carla, cada uma em em uma de suas bochechas. “Tá bom, tá bom!” grita ela, “Voltem já pra lá, as duas!” ordena, arrumando o jaleco, rindo e se recompondo. “Antes de mais nada, continuem mantendo o nível de cuidado que dizem que já estão tendo, não vão abusar por causa do que eu falei!” mandou, apontando o dedo, pra enfatizar. “O potássio e as vitaminas devem ajudar com as câimbras, mas me parece que a fonte da tensão é mais psicológica do que física. Enfim, se fosse eu, daria um passo atrás. Desfaz essa cara, Val, não estou dizendo pra parar nada, só… aconselho” enfatizou a palavra “que vocês tentem usar algo menos restritivo. Algo que lhes permita uma liberdade de movimento e de postura maior. Podem até não sentir, mas a posição dos antebraços atados tão juntos vai inevitavelmente emanar tensão para todo o corpo.”

“Estávamos pensando em algemas!” soltou Astrid.

“Qual parte do ‘menos restritivo’ você não entendeu?” ralhou Carla.

“Não comuns!”, justificou Astrid. “Na verdade já encomendamos alguns sets de correntes. São inoxidáveis e em comprimentos variados. Imagine algo do tipo braçadeiras feitas sob medida, anatomicamente personalizadas, unidas por correntes.”

“Tornozeleiras também.” complementou Valentina. Notou a expressão de Carla e completou: “Tenho um fraco por pés, que posso fazer?” e deu uma piscadinha.

“Onde é que vocês arranjam esses brinquedos?” perguntou Carla.

“Ah, temos umas amigas beeem esquisitas.” cochicha Valentina, em tom de conspiração. “E em várias áreas.” Deu uma piscadinha pra ela.

“Ok, suas doidas,” diz Carla, aos risos. “Vamos ver no que isso vai dar. Na verdade…” ela faz uma pausa, parecendo refletir, “eu confesso que estou realmente curiosa de saber até onde vocês vão chegar. Cheguei a pensar em…” ela interrompe a fala.

“O que?” diz Valentina, curiosíssima.

“Não, não, não!” Carla sacode a cabeça enquanto se levanta, “Já falei demais e vocês já são loucas o bastante sem que eu dê corda. Dêem o fora daqui, a gente se vê e me mantenham informada.”

A despedida se prolongou até o corredor, cheia de tiradas bem humoradas e provocações maliciosas e amistosas. Quer fosse dito ou não, o alívio entre as três era significativo. Para Val e Astrid, foi um reconhecimento que elas mal sabiam o quanto precisavam. Para Carla, a oportunidade de, ao menos, começar a se aproximar de algo que a inquietava mais do que estava preparada para admitir. “À propósito,” comentou ela na porta do consultório, enquanto as duas esperavam o elevador, “Adoro esses seus novos looks adaptados.”

“Sim!” concordou Valentina, empolgada, “A maioria foi Astrid que desenhou. Práticos, não?”, apontou para a localização das tiras no espartilho de Astrid e dos zíperes no seu collant. Bastaria soltar e as peças desmontariam, sem necessidade de passar pelos braços atados. “Mas claro que isso é só para as ocasiões públicas, você sabe como eu sou com roupas.”

“Ah sim.” concordou Carla, com o ombro apoiado no batente da porta. “Quanto menos melhor.” E deu um tchauzinho, enquanto a porta do elevador fechava.

No uber, recostada em Valentina, Astrid comenta: “Minha Deusa, como ela é linda, né?”

“Carla?” concordou Valentina, “Maravilhosa! Sempre foi. E é uma gênia! Ela não precisava nos atender, sabia? Faz anos que não clinica mais. Ela abriu uma exceção pra nós. O trampo dela é no laboratório, pesquisa em cirurgia avançada, bioquímica. É a mais jovem chefe de pesquisa da história do departamento dela, pelo que fiquei sabendo.”

“Jovem mesmo, parece uma menina, com aquele cabelinho.” divagou Astrid. “Já ficaram?”

“Vez ou outra, nos rolês.” admitiu Valentina. Astrid suspirou, preparando-se para cochilar o restante do caminho, a cabeça repousando no ombro de Valentina: “Que invejinha.”

Valentina sorriu, também fechando os olhos. Fingindo que não tinha notado que a motorista do uber as observava atentamente pelo espelho retrovisor.



5. Variações e Experimentações

Nas semanas que se seguiram, o ímpeto pela exploração das possibilidades de sua união física atingiria um frenesi que talvez nem Astrid e Valentina tivessem antecipado. Liberadas, em parte, pelo aval relutante de Carla, as duas se jogaram nas experimentações com uma intensidade crescente que dispensava um senso de propósito definido, afinal o objetivo em si já havia sido alcançado: estavam juntas e assim ficariam. A questão agora era as formas possíveis para essa união, e o quão satisfatórias poderiam ser.

Ainda assim, acataram os conselhos e decidiram começar devagar. Os sets de correntes chegaram alguns dias depois da consulta, e foram estudados com carinho e atenção. Havia desde sets de um metro de comprimento, até braçadeiras e tornozeleiras que eram pouco mais que dois grilhões fundidos juntos. A maioria com design especificamente requisitado, mas havia uma ou outra surpresa, que as migas dos tempos de bondage tinham se dado a liberdade de acrescentar.

“Que diabos é isso?” perguntou Valentina, tirando da caixa uma estrutura bizarra, que mais parecia uma obra de arte abstrata.

“Meu, não tô entendendo.” admitiu Astrid, enquanto Valentina lhe passava o negócio.

“Veio do dojo da Pâmela. Ela é meio surtada.” especulou Valentina.

“Peraí?”, gritou Astrid, virando o objeto de ponta cabeça. “Isso são dois cintos de castidade interconectados?” perguntou com uma cara de espanto.

“Oh, minha Deusa!” exclamou Astrid, pegando o negócio de volta, chocada. “Como é que se entra nisso?”

“Nossa, Val… será…?” começou Astrid, mordendo os lábios.

“Não! Pelo amor da Deusa!” soltou Valentina, rindo e colocando o troço rapidinho de volta na caixa. “Eu prometi pra Carla que a gente ia devagar!”

Como quase tudo o que faziam, a nova fase foi selada de forma ritualística. Ajoelhadas no centro do carpete, com a sala parcamente iluminada por velas, Valentina e Astrid seguraram juntas a tesoura com suas duas mãos livres e começaram a, delicadamente, cortar os laços de shibari que as mantiveram unidas nessas últimas semanas. A essa altura, já tinham feito essa operação inúmeras vezes, sempre com uma nova corda a postos para se reunirem no menor tempo possível. Cada separação, por mais breve que fosse, era vivenciada com uma angústia maior. Desde a performance, nunca haviam estado a mais do que um centímetro de distância uma da outra, se muito. E, naquela noite, estavam prestes a experimentar uma corrente de um metro.

“Com certeza nos dará mais mobilidade.” comentou Astrid, com uma seriedade exagerada que buscava apaziguar a ansiedade que sentia. “O trabalho no ateliê vai ficar mais fácil. Vai dar pra gente usar duas bancadas ao mesmo tempo.”

“Ai.” gemeu Valentina, as duas segurando a corrente com as braçadeiras ainda abertas. As cordas cortadas espalhadas no chão entre elas. “Ok, vamos lá. Pronta?”

Astrid assentiu e se preparou para fechar a braçadeira no pulso direito de Valentina, enquanto Valentina se posicionava para fechar a outra braçadeira no pulso esquerdo de Astrid.

“Lembra que se esquecermos a senha, as fechaduras não abrem mais.” comentou Astrid.

“Ah, que problemão”, retrucou Valentina, “qual era mesmo?”

“Não brinque”, ralhou Astrid, “Não acho que vamos querer usar essa corrente por muito tempo.”

“Ok.” disserem ao mesmo tempo, os olhos fixos nos olhos uma da outra. Não precisavam contar. Apenas sentir. No mesmo instante, ambas as braçadeiras foram trancadas.

O “clique” reverberou nos corpos das duas com uma intensidade que as pegou de surpresa. Apesar do comprimento da corrente, a instantaneidade da união foi uma experiência nova que não haviam previsto. Estavam acostumadas ao lento, ainda que prazeroso, processo de amarrar e trançar as cordas. Ajoelhadas uma de frente a outra, sentiram o impacto como um choque elétrico, cada poro de suas peles se arrepiando no exato instante, num gozo repentino que quase as fez desfalecer. Elas se debruçaram uma sobre a outra, as testas coladas, as mãos ligadas pela corrente se agarrando e se apertando com força, ofegantes.

Então, aos poucos, a sensação foi se estabilizando, e o momento que receavam começou a se impor. Lentamente, começaram a se erguer até ficar de pé, no centro da sala, soltando as mãos uma da outra com uma espantosa relutância. Passo a passo, começaram a se afastar, testando o comprimento com os olhos fixos na corrente. Foi como uma vertigem. A sensação era de que a corrente não acabaria nunca, que estavam há horas se distanciando uma da outra. Quando a corrente, enfim, tensionou, o um metro parecia um quilômetro. Os olhos das duas se encontraram e o impulso foi avassalador. Se jogaram uma sobre a outra num frenesi de braços e pernas se enroscando e dando nó em desespero, os ventres pressionados até as peles quase perderem a cor, rosto contra rosto, lágrimas, suor e saliva se misturando.

Se acalmaram, trêmulas e ofegantes, tentando respirar mais fundo e compassadamente, ainda abraçadas, murmurando palavras de incentivo. Afinal, quão difícil isso poderia ser?

Mais preparadas, tentaram se afastar de novo, dessa vez tomando o cuidado de não romper contato visual, as coisas pouco a pouco se ajustando às suas reais proporções. Por fim, se deram conta de ter conseguido estender a corrente entre si até tensionar sem entrar em surto.

“Você parece tão longe,” admirou-se Valentina.

“Não sei se dou conta, Val.” lamentou Astrid, a voz ligeiramente embargada.

“Calma, calma.” confortou Valentina. “Peraí…” Começou a andar em círculos ao redor de Astrid, que logo começou a fazer o mesmo, ambas mantendo as correntes tensionadas e os braços estendidos. “Ao menos é linda, não acha?”

Astrid se concentrou na corrente que, de fato, nada tinha de comum. Seus elos dourados eram de um design milimetricamente interconectado que a fazia parecer uma coisa única e contínua, reluzindo em meio à luminosidade difusa das velas. As braçadeiras ligeiramente abauladas davam ao conjunto uma aparência elegante e harmoniosa.

“Imagina só numa disco?” comentou, ousando rir, apesar de ainda um tanto trêmula.

“Olha só…”, admirou-se Valentina. “Já temos um programa onde usar.” Seu andar em círculos começa a se tornar sinuoso e sexy, como uma dança.

Astrid tenta acompanhar, ensaiando alguns passos, girando no eixo em relação à corrente, enquanto Valentina sorri e acelera o ritmo, rodopiando ao redor de Astrid, que vai relaxando a cada momento. Súbito, Valentina se posiciona e puxa ela na sua direção, fazendo Astrid rodopiar e se enrolar na corrente até acabar em seus braços. O ritmo diminui e elas dançam coladinhas, num movimento lento e sinuoso, os seios de Valentina docemente pressionados nas costas nuas de Astrid, que derrete e solta os cabelos por sobre o ombro da parceira. Um novo movimento e Valentina faz ela se desenrolar de volta até a extensão da corrente, num passo que termina numa pose clássica das discotecas dos anos 70.

“Olé!” elas gritam juntas. E dançam aos risos, rodopiando e se curtindo, brincando com a extensão da corrente, num vai e vem frenético e bem humorado. Dançam até cair, exaustas, em seu puff favorito, gargalhando como molecas, enfim mais à vontade com essa nova etapa na sua jornada maluca pela união. Acabam dormindo ali mesmo, enroscadas e amarfanhadas. As loucas da corrente dourada, brilhando e resplandecendo entre elas.

E, de fato, a corrente dourada fez história. O período em que a usaram foi o mais boêmio da trajetória mútua de Valentina e Astrid. Talvez por ser realmente um objeto que pedia por esse tipo de exposição, ou talvez porque “abria um espaço” entre elas que convidada a ser preenchido por outras pessoas e por convívio, ao mesmo tempo em que representava um risco que, conscientemente ou não, teria de ser encarado.

Seja como for, por um tempo voltaram a ser as figurinhas carimbadas que eram nas baladas alternativas antes de tudo aquilo começar. Ferviam nas pistas de dança e inspiraram as DJs com suas coreografias extravagantes em torno da corrente que brilhava sob os refletores, ora se esquivando graciosamente das perguntas indiscretas, ora escancarando um ou outro detalhe sórdido, só pra dar uma escandalizadazinha básica na sociedade.

“Gente, é óbvio que vamos ao banheiro juntas! Superem isso, pelo amor da Deusa!” berrava Valentina, em meio à cacofonia de som e luzes.

“A gente tem duas!” berrava Astrid. “Duas o que?” berrava de volta o par de gotiquinhas em corpetes de couro. “Duas privadas! Uma ao lado da outra!” cravava ela, com um sorriso de moleca, diante das carinhas pasmadas.

“Vocês não?” arrematava Valentina, só pra dar um touché.

Eventualmente, acabaram se tornando parte da paisagem. A corrente entre elas cada vez mais “desconsiderada”, de forma blasé, nas rodinhas de conversa, como quase tudo que já passou da fase da novidade. De certa forma, era um conforto serem reconhecidas como algo de corriqueiro, ainda que desse uma leve alfinetada no seu senso de excepcionalidade artística, em particular no caso de Valentina. Por outro lado, era uma razão a mais para a preguiça que se instalava conforme ia lhes ficando claro o quanto aquele retorno ao mundo só servia para confirmar o quão pouco aquilo tudo ainda lhes interessava.

Não que não tivessem aproveitado. Chegaram a comprar uma cama de casal para melhor acomodar entre as duas as ocasionais ficantes que iam “laçando” no decorrer dos rolês, por vezes de forma literal, usando a corrente, quando se viam numa vibe mais particularmente “vagabundas”. Ainda que deliciosas, ficava evidente que tais noitadas não tinham mais o peso de quando eram duas criaturas isoladas. Podiam dispensá-las com tranquilidade, o que nem sempre era o caso das meninas que caiam nas suas teias.

“O que ela tanto ficava babando no seu ouvido, afinal?”, irritava-se Valentina, esfregando os ladrilhos do box com uma força um tantinho excessiva. Astrid, que esvaziava a cesta de lixo, ajoelhada do lado oposto do banheiro, deu de ombros e respondeu:

“Ela dizia ‘eu quero ficar só com você, baby, só com você’, sei lá, parecia sério.”

“Mas que filha da…!” exclamou Valentina, semi oculta pelo vidro fumê, a corrente fazendo uma curva angulosa através da fresta aberta do box, “Por acaso você tem alguma coisa que eu não tenho? Aposto que fiz ela gozar mais que você.”

“Ah, isso é discutível!” zoou Astrid, sentando-se num dos vasos e observando a silhueta de Valentina. “A verdade, Val, é que ela achou que eu seria mais fácil. Poder é foda. O que ela queria mesmo era ver se podia nos separar.”

“Tô ligada.” concordou Valentina, dando uma espiada pela fresta, “Esse é que era o tesão dela. Que coisa, não?”

“Pois é.”, Astrid desenhava distraidamente com o dedão do pé no piso molhado. “Me dá um pouco de pena, na real. Deve ser doído ter um vazio assim…”

Valentina põe o rosto pra fora do box, a mão apoiada na borda da porta: “Você sabe que, antigamente, eu teria tirado um sarro de alguém tão Polyanna assim, né?”

“É por isso que está presa a mim.”, Astrid comenta, com uma piscadela, “Precisava dar uma quebrada em todo esse azedume.”

“E deu mesmo.” ela concordou. “E não te fez nada mal uma pitada de veneno nesse seu coração tão lindo.”

“Equilíbrio.” disse Astrid, parecendo mais linda do que nunca naquele banheiro recém limpo.

“Ei”, diz Valentina, “Você tá muito longe.” E Astrid se deixa puxar pela corrente para debaixo do chuveiro, no interior do box.

Na real, não era fácil pras outras pessoas lidarem com a sexualidade de Valentina e Astrid. As ficantes tendiam a encarar as coisas como um típico trisal entre duas mulheres casadas (ainda que particularmente excêntricas) e uma parceira de ocasião. Território desbravado e mais do que familiar. Mas o fato é que elas não eram casadas. Sequer namoradas. Não era uma amizade colorida ou mesmo uma relação fraternal que se sensualizou em demasia. A verdade é que não havia um nome para o que elas eram, e ao que não se pode nomear, não é possível exercer poder. Para as duas, o sexo não era algo que se pratica, algo com começo, meio e fim. Ao menos não entre elas. A sexualidade era algo que as atravessava a cada momento do dia, a cada pequena ação cotidiana. Dois corpos em permanente relação. Para muitas, era demais para se lidar. Tinha algo de avassalador. Algo de que precisavam fugir, ou até tentar destruir. Outras, não conseguiam tirar a experiência da cabeça. Mesmo as que estavam em paz com a ideia de que não faziam realmente parte daquela relação, fosse ela o que fosse, aquelas que não se sentiam, por assim dizer, “apaixonadas”, acabavam levando Val e Astrid consigo. Para seus relacionamentos, sua sexualidade, para suas vidas em si.

“Fiquei sabendo de mais de uma mina por aí que diz que não vê mais graça em ficar com uma pessoa só por vez desde que topou com vocês duas.” comenta Carla, distraidamente, enquanto observa Astrid e Valentina andando de um lado pro outro da sala.

“Tem culpa nós?” zomba Valentina, ainda que sabendo que seu sarcasmo habitual a muito não convence mais ninguém. Ninguém que importe, pelo menos.

“Não fala assim, Val.” Astrid gira e segue na direção contrária, levando Val consigo. “A gente acaba brincando com os sentimentos das pessoas assim.”

“Não desenvolvem nenhum tipo de apego por nenhuma delas?”, perguntou Carla, num tom ainda mais avoado, a cabeça virando de um lado para o outro como numa partida de tênis.

“Claro que sim!”, queixou-se Val, “Sabe que no fundo eu sou uma bunda, fico mal quando alguma delas corta contato. Não todas, claro.”

“Não foi isso que a Carla quis dizer, Val…”

“Eu sei, Tri, estou sendo tonta.” Val admitiu, tentando mudar a direção mais bruscamente do que Astrid, que a acompanha, graciosa. “Apego mesmo não, Carla. Carinho, vontade de rever, saudade, tesão até. Mas apego…”

“Não rola ansiedade, Carla.” explica Astrid, “Não tem mais aquela ânsia, sabe?”

“Desde que se uniram?”, divagou Carla.

“Isso.” Astrid parou e Valentina deu um suspiro de alívio. “Acho que já deu, né?”

Carla se ajeitou no puff, tirando os óculos e limpando as lentes. Riu, balançando a cabeça. “Ai, gente, sei lá…” desabafou. “O que poderia dizer? Vocês não precisam de mim. Desde quando estão usando isso?”

As duas ficaram paradas de pé no assoalho de madeira, de frente pra Carla, uma do lado da outra. Para não constranger a visita, cada uma usava uma combinação de shorts e top, com as habituais abotoaduras pelas laterais. O tornozelo esquerdo de Valentina estava firmemente preso ao tornozelo direito de Astrid por uma estilosa tornozeleira/algema que mais parecia um anel contínuo.

“Estreamos ontem!”, disse Astrid, com orgulho. “Engenhosa, não?”

“Trabalho da Pâmela, lembra dela?” comentou Valentina. “Ela é genial e tá adorando a ideia de nos fazer de projeto de design”.

“Nem preciso dizer que tecnicamente deveria ser impossível vocês caminharem com esse negócio com tanta facilidade, né?” perguntou Carla.

“A gente quase caiu ontem a noite!”, queixou-se Astrid.

“Quase, é?” sacaneou Carla, “E como? Correndo para o quarto?”

“Ah… bem…” Val deu de ombros, fazendo sua melhor cara de devassa.

“Deixa eu ver direito esse negócio, vai.” disse Carla, “Tentar ao menos fingir que a consulta a domicílio valeu pra alguma coisa.”

As duas avançam com a mesma desenvoltura, movendo-se em uníssono sem aparentar necessidade de combinar a direção ou coordenar os passos, nem mesmo sutilmente. “Tudo o que você faz pela gente vale muito, miga”, diz Valentina enquanto as duas apoiam os pés unidos numa banquetinha. Carla faz um gesto de “de nada” enquanto estuda a tornozeleira. “Que diabo de material é esse?”

“Um tipo de plástico, eu acho,” especula Valentina, “Ou resina, sei lá. Conhecendo Pâmela, deve ser uma mistureba de coisas.”

“O legal é que é maleável,” diz Astrid, contorcendo a perna de modo a demonstrar a relativa liberdade de movimento de um pé em relação ao outro. “Mas super resistente.”

“Como se tranca isso?”, estranha Carla.

“Se olhar com atenção dá pra ver a emenda das duas extremidades, mas é bem discreta”, aponta Valentina. “Aquela fendinha ali é onde encaixa a chavinha… que a Astrid engoliu.”

Carla e Astrid olham pra Valentina com uma expressão de “Ai, bocó.” Ela dá um sorrisão escrachado e puxa de repente o pé da banqueta, voltando a caminhar pelo espaço. Astrid simplesmente acompanha o movimento dela.

“Eu queria entender como isso funciona.” comenta Carla, enquanto elas dão voltas ao redor do puff, “É como se houvesse uma conexão direta do sistema nervoso, vocês nem precisam pensar pra se moverem em conjunto.”

As duas dão uma corridinha e pulam por sobre a banqueta, aterrissando no sofá, com um “Oui!!!”

“Sistema nervoso eu não digo, Carla”, afirma Valentina, se recompondo e abraçando a perna unida à de Astrid, ambas apoiando os pés no sofá, “Afinal, eu não sinto o que a Tri sente e vice-versa.”

“Se sentisse, já estaríamos falando de mágica, miga”, Carla diz, “Mas o fato é que essa… conexão psicossomática entre vocês parece estar em plena evolução. Duvido que voltariam a se atrapalhar como naquele dia, quando tratei o pulso de Astrid.”

“Nunca mais tivemos câimbras desde aquele dia.” reflete Astrid.

“E, antes que pergunte, sim, fomos atrás da médica que você indicou e nos livramos de vez da dor de cabeça mensal”, declara Valentina, “Tudo bem que nossos ciclos já estavam bem sincronizadinhos muito antes da gente se amarrar, e viver isso juntas meio que fazia parte do rolê, mas… Nossa! Chega disso! Já deu!”

“A suspensão da menstruação é a melhor amiga da mulher moderna.” concorda Carla, com uma pomposidade quase caricatural. “Affe! Ninguém merece menstruar!” Ela faz uma careta e estremece, num arrepio.

“É impressão minha", retoma Astrid, mais séria, “ou está ensaiando pra chegar num ‘mas’, Carla?”

“Mas…”, Carla solta, formando um ‘ó’ melodramático com a boca, “Não, tô zoando, mas tem um ‘mas’, sim. Nem que seja só pra justificar essa ‘consultoria’ que vocês mal precisam. Eu acho que, na falta de algo melhor, meu papel aqui pode ser bancar a advogada do diabo. É fato que essa conexão parece corroborar o que vocês desejam, e acaba sendo um estímulo óbvio para seguirem em frente. Mas… e se vocês mudarem de ideia?”

“Não vamos mudar…”, se adianta Valentina.

“Vocês não querem mudar!”, corrige Carla, “Mas, e se mudarem? Desejo é uma coisa meio doida. Por mais contraditório que pareça, ‘querer’ não tem muito a ver com ‘desejar’. Como ficariam vocês, seus corpos, suas… mentes… se, no fim das contas, acabassem voltando atrás e se separando? O que eu quero dizer é: essas… mudanças psicossomáticas ou seja lá como a gente chame isso… são reversíveis?”

Valentina e Astrid se ajeitam nervosamente no sofá, se sentindo atravessar por uma mistura inesperada e não-desejada de impressões conflitantes. Carla espera até suas observações assentarem, antes de concluir:

“Meu ponto é: vocês ainda seriam capazes de viver separadas, mesmo se quisessem?”

Elas se olham, meio dissimuladamente, em um aparente acordo tácito, e quase instintivo, de não revelar à Carla o quão fundo aquilo as atingira. Pelo menos, ainda não.

“Sei lá, Carla,” confabula Valentina, “Parece uma conversa meio acadêmica, considerando que a gente mal cogita a ideia de se separar.”

“Não me entendam mal.” prossegue Carla, “Eu não estou tentando convencer vocês disso. Eu passei dessa fase.” ela faz uma pausa, “Sendo bem sincera… a essa altura acho que eu ficaria até meio desapontada se isso acontecesse.” As duas sorriem com doçura, um rubor aconchegante subindo pelas faces das três. “Mas, vocês me pediram para apontar os riscos e levantar questões. E essa é uma questão para vocês refletirem aí, entre vocês. Uma coisa é certa: na melhor das hipóteses, ou seja, que vocês de fato nunca mudem de ideia e, claro, nunca aconteça nada que as obrigue a mudar de ideia… bom, aí vocês terão que aceitar o fato de que essa pergunta nunca poderá ter uma resposta.”

Um instante para um respirar fundo, um ajeitar-se no sofá, e Valentina quebra a pausa:

“Caramba, Carla… e você ainda diz que não é psicóloga.”

“Não sou!” repreende Carla com seu habitual dedo em riste, “E já falei o que eu acho que vocês deviam fazer quanto a isso.”

“Ah, não, Carla…”, queixaram-se as duas, mas foi Astrid que prosseguiu: “Onde acharíamos uma psicóloga que nos entendesse como você?”

“Ué, vocês não têm amigas esquisitas pra todas as eventualidades?”, debochou Carla.

“Não tão esquisitas.” ironizou Valentina. As três caem na risada.

“Ok, amores!” Carla se levanta, “Depois dessa eu vou-me! Já botei caraminhola o suficiente nas cabecinhas de vocês por hoje.”

“Achei que ia ficar pra jantar com a gente!”, choramingou Astrid, dando o braço pra Carla, enquanto as duas a acompanhavam até o carro.

“Fica pra próxima, Tri,” Carla justifica, “Tenho um compromisso…”

“Um encontro, é?”, brincou Valentina.

“Não… quer dizer…” gagueja Carla.

“Uau! É mesmo um encontro!?”, empolga-se Valentina, “Eu tava só jogando verde.”

“Então, não, é que…” ia dizendo Carla, já abrindo a porta do carro. “É com a Júlia.”

Valentina fica imediatamente séria, ainda que sem perder o ar jovial: “Uau, miga! Isso sim é surpresa!”, encarou Carla, as duas trocando um breve momento de cumplicidade silenciosa. “Não sabia que tinham voltado a se falar.” continuou, “Fico feliz… Nossa, feliz mesmo!”

“Eu sei.” Carla segura a mão estendida dela com força, “Enfim… é complicado. Vamos ver o que acontece.” Valentina assente, enquanto Astrid olha de uma pra outra com cara de quem não se aguenta de curiosidade. “Depois a Val te conta, Tri.” diz Carla, com uma piscadinha. Valentina faz uma cara de “Posso?” e Carla murmura: “Claro. Ela é você.”

As duas ficam observando o carro sumir na curva da entrada, e ficam ali, por um tempo, se abraçando pelos ombros, enquanto os últimos raios do poente vão sumindo. Elas sabem que ambas estão pensando no que Carla disse, mas igualmente sabem que não vão tocar no assunto agora. Elas se viram e seguem lentamente até a varanda, os pés algemados indo e vindo, como se fossem uma coisa só.

“Quem é Júlia?” pergunta Astrid.

“É a irmã de criação dela.” diz Valentina. Astrid a olha, surpreendida. “Como ela disse, é complicado.”

“Mas como assim? É um lance, tipo, incestuoso?”

“Nunca foi, pelo que ela disse.” Valentina continuou, “Não de forma literal. Mas elas foram criadas muito juntas desde menininhas, sabe? E rolou um vínculo, tipo, forte!” Astrid ouve atentamente, enquanto elas vão recolhendo as xícaras de café e levam pra cozinha. “Tão forte que as assustou. Elas brigaram e, pelo que eu sei, ficaram anos sem se falar.”

“Tô passada” comenta Astrid, lavando a louça enquanto Valentina vai secando e guardando, “Mas, Val, então é isso… não é a toa que ela nos entende.”

“Sim, eu não te contei porque era coisa muito pessoal dela.” diz Valentina e Astrid concorda, “Mas, de fato, a relação entre elas também era uma dessas coisas meio fora do padrão, que ninguém entendia, exceto, é claro, a amiga retardada com tara por irmãs siamesas.”

Astrid ficou pensando um tempinho, as mãos cobertas de espuma de detergente: “O mundo é tão maravilhosamente estranho, não é?”, sussurrou.

“Então vamos deixá-lo mais estranho ainda.” Valentina fala, dando um cheiro no pescoço de Astrid, que se arrepia até a raiz da alma. As provocações de Carla momentaneamente esquecidas e provisoriamente reprimidas em algum lugar profundo do subconsciente.



6. Performando sem Plateia

E, decerto, não seria coincidência que foi justamente a partir desse ponto que o ritmo (e a intensidade) das experimentações se acentuou, ainda que, de princípio, nenhuma das duas parecesse (querer) se dar conta de que haveria uma correlação. Era fácil se deixar levar pelo apelo hedonista mais direto. O contato físico contínuo entre seus pés descalços tinha um efeito intoxicante que, por mais que fosse antecipado, surpreendeu a ambas pela vivacidade com que estimulou as suas libidos. Ainda se alternavam, com certa regularidade, entre a tornozeleira e a corrente dourada, sempre que uma margem de manobra mais espaçosa lhes parecia conveniente para um compromisso social ou uma atividade mais complexa no ateliê. Mas ia ficando cada vez mais claro que nada menos que o contato de pele com pele lhes parecia tolerável.

Não demorou para que não tivessem mais pudores em aparecer para coordenar montagens de exibições e instalações, e nas reuniões da curadoria, conectadas de formas exóticas e não necessariamente funcionais. Havia uma variedade de espartilhos duplos, desenhados de modo a mantê-las unidas lado a lado, ou pelos quadris, ou costas com costas (um dos favoritos para agilizar as funções das estagiárias trabalhando em lados opostos do salão), ou mesmo ventre com ventre, uma opção que logo sacaram ser um tanto contra-produtiva, diante do efeito que provocava na capacidade de concentração das demais colegas.

Em todas essas variações, a elegância com que elas se moviam em uníssono, sem nunca parecer hesitar ou confundir os passos uma da outra, eram um desafio constante para as tendências blasé do universo das artes. Era quase hipnótico observá-las. Especialmente quando andavam de lado, feito caranguejos, ou se alternavam entre quem vinha de frente ou seguia de costas, sem nunca parecerem perder a fluidez ou a graça, como um duo de bailarinas. E as duas se deliciavam com o efeito desconcertante que provocavam.

Em geral, ninguém mais além delas sabia o quanto esses movimentos eram similares aos de Daisy e Violet Hilton. Algo que as encantava na mesma medida em que as perturbava. Por um lado, era a realização das suas fantasias de infância mais íntimas, de quando uma nem sabia da existência da outra e passavam as noites reassistindo às suas respectivas cópias de “Freaks”, só pra ver os passinhos graciosos das duas irmãs. Por outro lado, fazia pairar sobre elas, no limiar da consciência, uma conversa já antiga sobre consentimentos e escolhas, e sobre como ambas sempre evitaram reassistir “Chained for Live”, no qual as Hilton apareciam envelhecidas e já privadas de toda a sua graça.

Não que lhes faltasse estímulos para manter as reflexões mórbidas em suspenso. A relativa confiança na aparente capacidade de seus corpos de se adaptarem rápida e mutuamente às mais variadas formas de conexão soava como um desafio às suas disposições artísticas, e um convite para as tendências fetichistas mais extravagantes. Mal chegavam em casa e já abandonavam os espartilhos e as roupas pelo chão (nunca antes, claro, das tornozeleiras ou braçadeiras estarem posicionadas e devidamente trancadas) e se punham a especular de que nova maneira exótica iriam passar aquela noite.

“Passar a noite” se tornou, de fato, seu jogo de experimentação favorito para possibilidades limítrofes. Formas de junção que dificilmente seriam sustentáveis e, talvez por isso mesmo, estranhamente apreciáveis. Decerto não era prático, ou mesmo manejável, ficar usando por muito tempo uma focinheira dupla que mantinha as suas bocas firmemente coladas naquilo que poderia ser descrito como um beijo franco-siamês, mas não era nada que as impedisse de passar uma noite (ou duas, ou três, evidentemente não consecutivas) envolvidas num idílio mudo de olhares fixos e fôlegos salivantes compartilhados.

Há algo de inefável nos limites. Quanto mais testados, mais viciantes parecem se tornar. Certa noite dormiram algemadas não por um pé ou pelas mãos, mas por ambas as mãos e ambos os pés: o pulso direito preso ao pulso esquerdo, o tornozelo esquerdo ao tornozelo direito, e vice-versa, ventres colados, bocas unidas, uma literalmente sobre a outra. Não foi fácil se soltarem de manhã. Trancar braçadeiras era bem mais fácil do que encaixar uma chavinha com as mãos ainda presas pela outra braçadeira. O que não as impediu de tentar uma variação ainda pior na noite seguinte, dessa vez ao contrário: os pulsos de uma presos aos tornozelos da outra, numa posição tão limitadora de mobilidade, quanto reveladora da sinestesia entre as suas pélvis invertidas.

Era um jogo de estímulos duplos e contraditórios. Em que, não raro, o prazer proporcionado pela conjunção física propriamente dita era diretamente proporcional ao desconforto que ela lhes impunha. A dor, pouco a pouco, foi se tornando um elemento do processo, e só em parte elas se davam conta de que ambas estavam se tornando como subs de uma dômina que era a sua obsessão em si. Havia um deleite na humilhação partilhada e auto-imposta. No gozo associado à decadência que só as legítimas fetichistas eram capazes de conceber. E ainda que se mantivessem propriamente funcionais para com suas necessidades públicas e privadas, o bastante para que sua excentricidade fosse considerada socialmente aceitável e, em geral, pouco questionada, nos seus momentos de fragilidade mais íntima, dúvidas e inquietações aos poucos encontravam sua voz.

“Você…” murmurava Valentina, ofegante, os olhos fechados, a testa pressionada com força contra a testa de Astrid, “tem medo, Tri?”

“De nós?”, respondia Astrid, quase inaudível, as palavras literalmente sopradas na boca de Valentina.

“De mim…” ela dizia, as lágrimas escorrendo e se misturando ao suor de Astrid, “de tudo.”

Astrid aperta ainda mais o abraço de pernas e braços, seus lábios movendo junto os lábios de Valentina ao falar: “Tenho…”, ela sente Valentina aperta-la também, “Você também?”

A resposta de Valentina é um assentir tão de leve que Astrid só o sente pela pressão do rosto dela contra o seu. Elas mordem os lábios uma da outra, a saliva escorrendo pelos queixos também pressionados.

“Eu… tenho… medo…” Valentina balbucia, “por ainda ter… de perguntar…”, Astrid crava as unhas nas costas dela. Valentina emite um murmúrio choroso e faz o mesmo, as duas se apertando como se pudessem entrar uma dentro na outra, ambas sentadas sobre os lençois amarrotados, amarfanhadas juntas num nó de desespero, suor e sangue, suas pélvis se movendo em uníssono, num ímpeto constante e ritmado.

“Nunca, nunca…” repetem, ou pensam repetir, uma dentro da boca da outra, intensificando o ritmo. O gozo vindo num ápice de dor. Seus fluidos misturados ao sangue encharcando a rigidez metálica dos cintos de castidade interconectados que lhes esfoliam as peles. E com o gozo, a renúncia, o quase esquecimento. Mal saberiam dizer quanto tempo ficaram ali, entregues, corpos equilibrados juntos, as respirações se normalizando em uníssono, pulsos tão sincronizados que se faziam sentir como se provenientes de um único coração. Podem ter adormecido ali, sentadas no escuro, pois a certo momento se aperceberam do arrepiar de suas peles, do suor agora gelado… e da dor.

“Val… não vou dar conta de usar esse negócio a noite inteira.” Astrid falou ao ouvido de Valentina, quebrando o silêncio. “Ai… nossa, nem eu!”, ela responde, se recompondo e olhando ao redor em busca de alternativas. Com um braço ela sustenta Astrid, tentando manter seus corpos equilibrados para amenizar o atrito, enquanto estica o outro braço para alcançar a braçadeira mais próxima.

“Ai, Val, devagar!”, se encolhe Astrid, mordendo o lábio, “Eu sei, eu sei.”, Valentina encaixa a braçadeira no pulso direito de Astrid e no seu esquerdo e tranca com a rapidez da prática. “Cadê essa merda?”, pergunta, vasculhando os lençois. “Aqui, na dobra.” responde Astrid, passando a chave pra ela. Valentina destrava o pequeno cadeado que conecta as duas peças do cinturão duplo que, de pronto, se desmonta, aliviando instantaneamente as suas virilhas. As duas gemem juntas.

“Minha nossa, Val, olha isso, o lençol tá todo manchado de sangue!”, Astrid se assusta.

“Eu sei, fica calma, só ralou um pouquinho, vem.” Valentina ampara Astrid, conduzindo-a ao banheiro. “Vem, vamos tomar uma ducha.”

“Precisamos de um antiséptico.” lembrou Astrid. Val assente e as duas entram debaixo do chuveiro. A água quente as revigora mas, ao mesmo tempo, intensifica o ardor. Valentina se agacha, lavando a virilha de Astrid com todo o cuidado.

“Desculpa, Tri, foi uma ideia idiota.”, Valentina desabava.

Astrid retruca: “Pode ser, mas foi nossa ideia idiota, Val, como sempre.”

A intenção era soar tranquilizadora, mas Valentina teve a impressão de notar uma pitada de ressentimento em meio à doçura.

“Enfim”, prossegue Valentina, tentando abafar a sensação, “mas eu devia saber, a Pâmela é tão sem noção...” mal acabou de dizer e uma resposta automática pareceu se formar entre as duas, sem ser pronunciada: “E quem seríamos nós pra falar que alguém é sem noção?”

“Deixa eu cuidar de você.” pediu Astrid, acariciando os cabelos molhados de Valentina. Elas trocam de posição e Astrid se põe a limpar as escoriações da parceira com tanta suavidade que Valentina não consegue evitar as lágrimas. “Val, não…”, Astrid levanta e a abraça com ternura, as mãos algemadas pressionadas entre as duas, bem junto aos seios. “Ei… ei…” ela murmura, em meio aos soluços. “Desculpa, Tri…” ela diz, “eu sou uma tonta…” “Não, Val”, Astrid segura o rosto dela com a mão algemada, fazendo com que Valentina também se acaricie através dela, “Nós somos uma tonta.” As duas riem baixinho e a ducha forma uma concha protetora ao redor de ambas.

Roupas de cama trocadas, curativos aplicados, as duas se deixam cair na cama, exaustas como a muito não se sentiam. Quase não se falam. Há tempos que a comunicação verbal deixara de ser coisa indispensável, mas, de algum modo, o silêncio hoje lhes parecia um tanto menos confortável. Elas se mexiam no colchão, inquietas na penumbra, os corpos nus duelando com os lençois, enrolando e desenrolando, num sono leve que ia e voltava.

“Val”, sussurrou Astrid, com a voz embargada, “Pode trocar a braçadeira pela tornozeleira?”

Valentina se estica até o criado do seu lado da cama, onde costumavam deixar as chaves e conexões alternativas. Pensou ter murmurado alguma coisa em meio à dormência, “Prefiro os pés também.” pode ter sido. Sentou-se na cama com os cabelos caindo na frente do rosto e, mais com o tato do que com a visão, encontrou o pé direito de Astrid que, a essa altura, já ressonava, dormindo profundamente. Com a habilidade da prática, ela o prende o ao seu pé esquerdo com a tornozeleira e, mal se dando conta, solta a braçadeira dos seus dois pulsos, deixando-se cair novamente no travesseiro.

O tempo se torna indistinto. Sonhos e devaneios se alternando. Em meio ao torpor da semi consciência, Valentina tem a impressão de ver o rosto de Astrid pairando sobre ela em meio à penumbra, olhos marejados, numa expressão de profundo desalento. Ela se vira na cama, tentando se livrar do sonho, mas a sensação de vertigem não lhe permite conciliar um sono tranquilo. Ela se sente flutuar, ou cair sem apoio no espaço, enquanto imagens confusas e impressões desagradáveis a fazem se remexer, inquieta, na cama. Aflita, ela se encolhe de lado, abraçando as pernas numa posição fetal. Foi preciso alguns minutos, ou talvez horas, até que ela se desse conta do que tinha feito.

O despertar foi súbito. Valentina se senta na cama num salto, tomando fôlego, ainda sem entender muito bem o que a tinha alarmado. A madrugada ia alta e a escuridão era quase completa. Não se ouviam os grilos e outros sons noturnos. Até o ar parecia pesado. Podia sentir a sua pulsação acelerada, o suor frio na pele, a respiração rápida, mas tudo o que conseguia fazer era olhar fixamente para seu pé esquerdo. Antes mesmo da compreensão, lhe veio a náusea, o horror. Estava sozinha. Sozinha na cama. Sozinha depois de meses!

Não conseguia mover o pé, não conseguia se mover. Se sentia amputada, deformada, torta. O que aconteceu? Quanto tempo fazia? A cabeça girava, misturando imagens dos sonhos com lembranças fragmentadas de milhões de pequenos momentos nos últimos dias. Queria gritar, mas não encontrava voz. Começou a olhar ao redor, aturdida. Para o espaço vazio ao seu lado, para a porta do quarto ainda fechada, as janelas. Estava tão escuro! Cadê Astrid? Pra onde ela foi? Por que fez isso? As lágrimas escorriam por seu rosto sem que ela sequer as sentisse.

Então se deu conta do som baixo e regular de uma respiração, ao mesmo tempo que seus olhos iam se acostumando com a réstia de luar que atravessava as venezianas. Percebeu a forma acocorada num dos cantos do quarto e, quando seus olhos se ajustaram à penumbra, ficou claro que era Astrid. Ela a encarava com os olhos vidrados de um bichinho assustado. Entendeu que devia estar com a mesma expressão e, a muito custo, tentou se recompor, a boca ensaiando a pergunta que lhe queimava por dentro, sem conseguir achar as palavras adequadas. Não era de se espantar que Astrid, como de hábito, as achasse primeiro:

“Por que você nos cortou?”

A suavidade com que aquela voz expressava tamanho lamento e ultraje impactou Valentina mais do que a brutalidade do termo empregado, ao mesmo tempo que traduzia exatamente como ela mesma se sentia. “Cortada…” balbuciou, “Não, eu… não cortei… Achei que…”

“Eu acordei”, Astrid prossegue, num tom ainda mais inescrutável, “e não te sentia mais.” Ela hesitou, parecendo se esforçar para ler cada micro reação da outra. “Estava de costas pra mim…”

“Eu não cortei” interrompeu Valentina, aflita, “Eu achei que você tinha…”

“Você não trancou a tornozeleira.” Astrid soava com uma suavidade angustiante. “Destravou os pulsos… e não trancou a...”

“Eu tranquei!” protestou Valentina, “Eu sei que tranquei, eu…” hesitou, a dúvida pairando no limiar da consciência. “Não foi você que…?”, notou, pela primeira vez, a tornozeleira aberta ao pé da cama, meio oculta pelos lençois. “Não foi você?” a pergunta agora carregada de uma ânsia desesperada.

Astrid não respondeu. Engoliu em seco, os olhos marejados fixos no rosto de Valentina. Por segundos que pareceram intermináveis, nenhuma das duas falou, apenas se olharam no escuro, os corações batendo forte, as respirações se regularizando.

“Val,” murmurou Astrid, a voz soando um tanto mais firme e controlada, “Val, você… você ainda…”, a garganta falha, os olhos se fecham por um instante, “Ainda quer…?” Ela parecia prestes a explodir em lágrimas.

“Sim!” gritou Valentina, “Pelo amor da Deusa, como não? Como poderia duvidar?”, o tremor na sua própria voz a exasperava. Se ajeitou na cama como se fosse pular sobre Astrid, mas não conseguiu, seus músculos pareciam vacilar, não se sentia autorizada.

“Por favor, vem!” exclamou Astrid, deixando o pranto aflorar, “Eu não consigo levantar!”

Valentina se arrastou pela cama, as pernas trêmulas, os movimentos atrapalhados, como se estivesse bêbada. Deixou-se cair no chão e engatinhou até Astrid, que tentava alcançá-la com os braços estendidos. O choque do contato físico pareceu reanimar tanto os membros quanto suas vontades. Uma ânsia furiosa as tomou. Agarravam-se em desespero, como se alguma coisa estivesse prestes a arrancá-las uma da outra novamente. Choravam, gemiam, mordiam-se e cravavam as unhas na pele, e por mais que pressionassem os corpos juntos, nada parecia chegar nem de longe a ser o bastante. O beijo era menos uma carícia e mais uma forma de se mesclarem por dentro, fundindo entranhas e espíritos.

“Precisamos das algemas…” rosnava Astrid ao ouvido de Valentina. “Foda-se essa merda,” ela retruca, “Abriu sozinha, não travou direito, sei lá, não basta!” As duas se encaram, olhos nos olhos, uma segurando a cabeça da outra com as mãos, os rostos tão pressionados que os cílios se emaranham entre si: “Eu não aguento continuar separada” diz Astrid. Valentina estremece e retruca: “Vamos!”

Elas levantam, dessa vez com total firmeza, mesmo agarradas num nó de braços e pernas, e saem do quarto, determinadas. Valentina talvez conduzisse, mas não dava para saber ao certo, podia ser Astrid também. Moviam-se como se fossem uma, até o atêlie. Vasculharam seus apetrechos de body art até achar o que precisavam e então se posicionaram, lado a lado, sentadas em banquetas, fazendo um esforço para desvencilhar os braços, ao mesmo tempo em que pressionavam seus quadris juntos. Com destreza e habilidade, começaram a costurar a pele das coxas e dos quadris com uma agulha esterilizada, e uma linha especial para trabalhos com body piercing. O sangue escorria, seus músculos estremeciam, mas, a cada ponto, o seu mal estar ia diminuindo, na mesma proporção em que a dor aumentava. Não pensavam em nada, exceto na urgência de estarem juntas. Quando se levantaram, o repuxar da costura quase as atordoou, mas nem se comparava ao prazer que sentiam por estarem juntas de novo. Com cuidado, foram se deitar num dos colchonetes do ateliê, onde se deixaram largar, de costas, corpos enfim relaxando, sem dar atenção ao suor frio e à dor. Sentiam-se vivas e revigoradas como há muito não se sentiam, talvez desde a performance. O seu pacto, enfim, renovado.

“Isso, definitivamente, não é sustentável.” declamou Astrid, com uma veemência cômica.

“Com certeza não!” riu Valentina, virando o rosto para olhar para ela, “Mas acho que a gente sobrevive um tempo.”

As duas ficaram ali, se olhando em silêncio, deitadas lado a lado e curtindo, no latejar de seus quadris e coxas, a carnalidade extrema daquela união.

“É pior do que isso.” murmurou Astrid. “Essa linha ainda é um objeto entre nós.” Valentina ouvia com atenção. “Como as cordas. Como as algemas. Nós sempre dependemos de um objeto entre nós.”

“Nossa união é frágil”, Valentina sussurra, “como os objetos entre nós.” Ela passa os dedos sobre a costura, sentindo a pele de Astrid se arrepiar junto com a sua.

“Tem que ser pele com pele.” diz Astrid. Valentina assente, as duas fechando os olhos, enquanto as mãos de ambas tateiam pela costura nos quadris até alcançarem a pélvis uma da outra, descendo pelas vulvas. “Mas como?” pergunta Astrid.

“Tenho… algumas ideias.” Valentina geme, a voz falhando conforme os dedos de Astrid se tornam mais ágeis. “Mas, Tri… o que importa é que…” ela corresponde ao toque, “eu não quero ter escolha.”

“Nem eu.” Astrid se contorce, o ombro colado ao de Valentina, seus dedos trabalhando em uníssono com os dela. “Nunca tivemos.”

E se deixam perder num gozo ainda mais intenso e infinitamente mais acolhedor do que o que partilharam horas atrás. E passaram a noite ali, em meio às suas obras de arte, mal se movendo para não perturbar os pontos que sabiam muito bem que não poderiam durar. Mas não se preocupavam. Tinham certeza de que uma solução se apresentaria. E guardariam com carinho as lembranças daquela noite, a noite que passaram costuradas uma na outra. E na performance que as uniu pela segunda vez, sem que ninguém, além delas, estivesse ali para assistir.




7. Para ir Além da Pele

“Merda!” exclamou Valentina, “É a Carla!”

Astrid solta um gritinho: “Ai, caramba! E agora?”, começou a rir, o rubor subindo pela face.

Valentina espiava pela ampla janela que dava para as escarpas ao longo do vale. Qualquer carro se aproximando pela estrada era visível com alguns bons minutos de antecedência.

“Agora… fudeu!” Valentina cuspiu uma risada, tapando a boca com as mãos.

“Val do céu!” Astrid ria, mas no fundo estava meio em pânico. “É hoje que ela nos interna!”

“Interna nada!”, Valentina fez um gesto de desdém, “Ela é tão sem noção quanto a gente, só sabe disfarçar melhor.” Deu outra espiada, calculando a distância. “Acho que temos uns dez minutos.”

“Pra fazer o que?”, Astrid não conseguia controlar o riso. “Só se a gente arrancar a pele!”

“Não!” retrucou Valentina, “Pra gente vestir alguma coisa, pelo menos. Joga pra mim aquele top.”

“Ah, que fofo!” Astrid obedeceu, se contorcendo no chão, depois, para vestir e abotoar as laterais do short. “Doidas, mas recatadas.”

“Xiu!” zoou Valentina, erguendo os quadris para se encaixar na saia e fechar o zíper, as costas apoiadas no assoalho, “Sua tonta!” deu uma pedalada com as pernas, fazendo as pernas de Astrid pedalarem junto.

“Ei! Tô tentando me vestir!” As duas gargalhavam como crianças pegas no flagra. “Ainda dá pra ver as marcas dos pontos? Não contou nada pra ela sobre isso, né?”

“Como se você não fosse saber se eu contasse!”, ironizou Valentina, voltando a sentar no chão e flexionando as pernas, para se aproximar de Astrid.

“Sei lá, vai que mandou uma mensagem.” queixa-se Astrid.

“Fica sussa! A noite da costura é um segredinho nosso.” Valentina dá uma piscadela. “É melhor assim, Carla não precisa saber tudo. E outra, ela ia passar mal, não suporta sangue.

A cabeça de Astrid brota comicamente do topo da camiseta, com cara de interrogação: “Mas ela é médica!”

“Tô falando que ela é sem noção.” Valentina se vira, ouvindo os pneus se aproximando. “Lá vamos nós!”

Carla manobrou até seu lugarzinho cativo, sob a sombra da grande mangueira, os pneus do carro emitindo o seu já habitual ruído caloroso de cascalho remexido. Ela ainda se sentia na obrigação de sustentar uma certa sobriedade profissional, mas o fato é que essas visitas já haviam se tornado, a muito, o seu oásis particular em meio às pressões da universidade, os revezes no laboratório e a constante necessidade de lidar com verbas e financiamentos de pesquisa. O mundo de Valentina e Astrid parecia tão mais rico e acolhedor do que tudo o que ela conhecia, por mais ilógico e absurdo que fosse (ou talvez justamente por ser ilógico e absurdo). Mal desceu do carro e já se sentiu convidada por aquela varanda sempre aberta e tão bem conhecida, mesmo que as donas da casa não estivessem visíveis. Teriam saído? Talvez devesse ter mandado uma mensagem. Mas tudo bem, não importa. Sabia que não se importariam se ela se jogasse num puff e esperasse por elas. E hoje era tudo o que ela queria, de fato. Nada de avaliações médicas e psicológicas, só um pouco de aconchego no cafofo de suas amigas mais queridas.

“Tri, Val, é a Carla!”, chamou, pendurando a bolsa no mancebo e tirando os sapatos antes de pisar naquela sagrada bagunça de apetrechos artísticos, temperados pelo cheiro de tinta e de café. Já se sentia em paz.

“Oi, Carla!” ecoou as vozes das duas em coro, de algum lugar de fora da sala.

“Oi, cadê vocês, meninas?” perguntou Carla, enquanto se deixava afundar no canto do sofá, mantendo uns dois terços de espaço para as anfitriãs. “Estão ocupadas? Desculpe aparecer assim sem avisar.”

“Até parece, Carla, você é da casa.” respondeu Astrid, ao longe.

“Mas?” riu Carla, que já as conhecia bem.

“Sem ‘mas’, miga,” soou Valentina, com o seu deboche habitual, “O seu timing é impecável.” Carla podia ouvir as duas dando risadinhas, de onde quer que estivessem.

“Tô ficando com medo, Duas,” zoou Carla, “O que vocês aprontaram?”

“Então, miga, você nos pegou no meio de uma experiência, sabe?” explicou Valentina. “É um pouquinho esquisito, mas tá tudo sob controle.”

“A gente sabe o que está fazendo!” acrescentou Astrid.

Valentina riu ainda mais: “Isso! Não vai surtar!”

“E eu lá surto com as doideiras que vocês fazem?”, protestou Carla. “Passei dessa fase, já disse. A não ser que me apareçam, sei lá, com duas cabeças num só corpo, ou algo assim.”

“Deusa me livre!” gritou Valentina. “Gosto do meu corpinho inteirinho do jeito que é!”

“Eu também!”, gritou Astrid.

“Também gosta do meu corpinho?”, perguntou Valentina.

“Não, também gosto do meu corpinho inte… Ah, sua tonta!”, dessa vez as três gargalharam.

“Ok, ok!” Carla chorava de rir, “Prometo que não vou surtar, vão logo!”

Carla esperava que as duas literalmente pulassem “em cena”. Ao invés disso, a cabeça de Valentina apareceu devagarinho na parte de baixo da porta que dava para o quarto. Ela dá uma piscadinha para a cara de interrogação de Carla e começa a engatinhar para dentro da sala, fazendo toda uma pose de “gatinha” sexy caricata. Na altura em que os quadris já passavam pela porta, Carla começa a se perguntar onde diabos estaria Astrid, quando, do nada, Valentina dá um giro e se deita de costas no chão, alongando-se como uma stripper, as pernas nuas levantadas para o ar, mas ainda parcialmente ocultas pelo batente da porta. Então, usando os antebraços como apoio, ela se impulsiona, deslizando, para dentro da sala e, assim, puxa as pernas de Astrid através do batente, revelando que as solas dos pés das duas estão firmemente prensadas uma na outra.

Carla arregala os olhos e põe a mão na testa, vendo o restante do show. Astrid termina de passar pela porta e as duas giram, num movimento suave e gracioso, como de hábito, se posicionando sentadas no chão, ombro a ombro, com as pernas dobradas de modo que os pés unidos ficassem apoiados ao lado dos corpos. As duas então abrem os braços num “tchananam!” exagerado de desenho animado.

“Ok, não me digam: se arrastar pelo chão é a moda do momento, então?” zoou Carla, “Pra que andar, não é mesmo? Coisa mais démodé, andar.”

“É um rolê superestimado, Carla”, riu Astrid, prendendo os cabelos num coque.

“Pois é”, exclamou Valentina, “o lance é explorar movimentos alternativos, plano baixo, plano médio, um certo contorcionismo, manter os corpinhos em dia.”

“Como se precisassem, né?”, apontou Carla, encostando as costas no sofá. “Estão sempre perfeitas, suas vacas!”

As duas levantaram um par das pernas unidas num movimento sexy, se apoiando de costas uma para a outra. “Brigada, fofa!” agradeceram em uníssono.

“Ok, então.” disse Carla, “É o que estou pensando? Vocês colaram as solas dos pés?”

Elas encolhem as pernas ao lado dos corpos e Valentina passa o dedo pela extensão das solas conectadas. “Pele com pele. Conexão direta, sem apetrechos intermediários. Digo, exceto pela cola, claro.”

“É essa a ideia?”, pergunta Carla. “Dispensar os intermediários? O que usaram aí? Super bonder?”

“Não, é outro tipo de cola instantânea, especial para maquiagem cênica.” explica Valentina, “Não cristaliza,  mantém uma certa maleabilidade, e é mais confortável para o contato direto na pele.”

“Ah é?”, comenta Carla, com um ar cético. “Não dói?”

“Bom”, admite Astrid, com uma leve careta, “Repuxa um pouco, mas não é nada comparado com outras coisas que já tentamos.” Valentina dá uma olhadinha conspiratória pra ela, que dá de ombros.

“Nem vou perguntar.”, suspira Carla, fazendo o seu habitual gesto de unir as mãos na frente do rosto enquanto se inclina para frente. “Mas, gente… tinha que ser as solas dos pés? Não podia ser algo mais prático?”

“Quem disse que começamos assim?” comentou Valentina, fazendo uma cara de menina levada. “Ou que vamos parar por aí?” deu uma piscadela.

“É como a Val falou, Carla, você nos pegou no meio de uma experiência.”, explica Astrid. “A ideia é só passar um dia ou dois, no máximo.

“Ok, mas…” insiste Carla, “Solas dos pés?!”

“Lembra que você ficou se perguntando como a gente alongava?”, perguntou Astrid, “Então, caiu nossa ficha de que um exercício que a gente nunca mais pôde fazer foi esse.”

As duas deslizaram uma pra longe da outra, esticando as pernas o máximo possível. Então curvaram-se, dando as mãos, para fazer uma gangorra de alongamento. Carla não pôde evitar cair na gargalhada.

“Ah, Deusa do Céu!” Carla ria, “Como não amar vocês, suas retardadas? Como eu odeio vocês duas!”

“Ah, Carla, vai!” disse Valentina, indo e vindo no balanço da gangorra. “A gente pensou: por que não?”

“Sem contar, é claro…” complementou Astrid, soltando as mãos de Valentina e movendo os dedos dos pés para abraçar os dedos dos pés dela, “o fator fetiche.”

Carla aquietou, por um instante, olhando para as duas com um sorriso doce. Pensava em suas reações, como médica e como pessoa, quando tudo isso começou, e o quão absurdo era o fato de não conseguir mais achar nada daquilo absurdo, embora ainda se forçasse a, pelos menos, aparentar.

“Admito.” suspirou ela, “Isso é sexy pra caramba.”

As duas disparam num aplauso empolgado (e aliviado), batendo palmas e dando gritinhos de contentamento.

“Ai, Carla, vem cá!” exclamou Valentina, “Vem aqui, eu sei que você tá louca pra examinar nossos pés!”

“Venham aqui vocês”, retrucou Carla, deixando-se escorregar do sofá para o carpete. “Não estão craques nos movimentos alternativos?”

As duas rolam, literalmente, pelo carpete, até se ajeitarem de modo a ficar cada uma de um dos lados dela, os pés unidos posicionados bem na sua frente. Carla passa o dedo pela linha da cola, como Valentina havia feito, constatando que, pra variar, não havia o menor sinal de irritação na pele. Segurou, com cuidado, o pé esquerdo de Astrid e o pé direito de Valentina, que estavam por cima, e perguntou: “Posso?”

“Manda ver.” autorizou Valentina. Então ela puxou e ficou claro o quão firmemente as solas estavam grudadas. Notou que as duas se arrepiaram enquanto ela puxava. Soltou os seus pés, com delicadeza, e recostou as costas no sofá. Elas fizeram o mesmo dos lados dela.

“Dissolve com removedor?” perguntou. Elas assentiram.

“Mesmo assim, não é nada fácil de tirar”, admitiu Valentina.

“Mas a ideia é essa.” comentou Astrid. Carla assentiu, suspirando e se permitindo relaxar.

“O que mais tentaram?” perguntou, com suavidade.

“Uma semana de mãos dadas.” falou Astrid.

“Viu, doutora?” brincou Valentina, “A gente sempre começa leve.”

Carla ri, “O que mais?”

Elas apontam para os quadris e para as barrigas.

“E pra depois?”

Elas indicam as virilhas.

“Algo me diz que será a favorita.” cochichou Astrid.

Carla sorri, se acomodando. Ela dobra os joelhos, encolhendo as pernas, e apoia seus pés descalços sobre os pés grudados das duas. Elas recostam as cabeças nos ombros dela, ficando assim, as três, por um tempo, em silêncio, enquanto a tarde vai caindo, e os últimos pássaros do dia vão encerrando seus cantos. Carla se sente num ninho.

“Júlia se mudou para o meu apê.” Carla suspira.

Val e Astrid levantam os rostos para olhar para ela. Carla sorri, os olhos fechados, uma única lágrima escorrendo pelo canto do olho. Elas beijam a amiga, cada uma numa face, sem pressa e com doçura, abraçando-a com força.

“Você merece tudo.” murmura Astrid num ouvido, enquanto Valentina sussurra no outro: “E não demore pra trazê-la aqui para uma noite de fondue!” Carla ri.

“A gente conversa muito… muito mesmo… sobre vocês duas.” ela diz.

“Eu sei, miga.” diz Valentina. Carla assente, segurando a mão dela. Quase distraidamente, ela alcança a mão de Astrid e junta os pulsos das duas, usando seus próprios dedos como “algema”. Valentina e Astrid trocam um olhar, simultaneamente intrigadas e encantadas.

“É pra valer, não é?” murmura Carla, “Estão tentando fazer isso se tornar permanente.”

Rola um silêncio. Astrid e Valentina observam Carla, intrigadas. Ao mesmo tempo em que se deixam levar por aquele idílio tão inesperado quanto delicioso.

“A gente passou por uns momentos ruins.” Valentina consegue dizer, enfim, “Tipo, bem ruins.”

“Muita coisa rolou para nos colocar em xeque.” explica Astrid, “Inclusive você, claro. Nem dá pra explicar o quão indispensável você tem sido nas nossas vidas.”

“Sempre feliz em ajudar.” brincou Carla, com a voz um tanto embargada.

“Enfim,” riu Valentina, enxugando os olhos úmidos, “O ponto é… nós estamos juntas, Carla, acho que, de uma forma doida que eu nem sei explicar, acho que a gente sempre esteve.”

“Algum dia temos que te contar a história do mural”, interrompeu Astrid.

“Por favor.” sorriu Carla.

“Mas a gente tem que…” continuou Valentina, “A gente precisa selar isso, entende?” Carla ouvia, atentamente. “Tipo, ok, talvez tenhamos outros momentos de crise, mas… mas faz parte. É isso, é o que tem que ser.”

“É o que já é.” murmura Astrid.

“A gente não vai se separar, Carla.” diz Valentina, olhando profundamente para os olhos de Carla. “Não queremos nos separar e não vamos nos separar. Mesmo que haja dias em que a gente se arrependa, mesmo que seja difícil… nós nunca vamos nos separar.”

“E só vamos ter paz quando pudermos ter certeza disso.”, completou Astrid.

Elas falavam baixinho, ambas com os rostos apoiados nos ombros de Carla.

“E por isso a cola, né?” ela pergunta. “Tem que ser o corpo. Diretamente.”

“Ou o mais próximo disso que seja possível.” diz Valentina.

“Possível…” reflete Carla, tanto para elas quanto para si mesma. “Eu achava que sabia o que era possível. O que era certo. Apropriado. O que fazia sentido.” passou os braços pelos ombros de ambas e as apertou com força, “Vocês mudaram tudo.”

Passaram mais um tempo ali, abraçadas na sala já às escuras. Até que, por fim, Carla dá um profundo suspiro, e se empertiga toda antes de exclamar:

“Gente… eu preciso de um café!”

Ela dá uma rápida olhada pra Valentina, depois para Astrid, depois para os pés grudados das duas, e completa, dando uma palmadinha nas coxas delas:

“Podem deixar que eu faço pra vocês.”



8. Anastomose

Foi numa manhã quente de primavera, poucos meses depois, que Astrid e Valentina saíram para a varanda para dar início ao que acreditavam ser o dia mais importante de suas vidas.

O céu estava azul e límpido, com poucas nuvens e uma brisa gentil. Os pássaros cantavam e os jardins ao redor da casa de campo fervilhavam de vida e fartura. Elas, que nunca foram exatamente criaturas diurnas, sendo artistas e performers, raramente se punham a vivenciar esse tipo de glamour bucólico, mas desde cedo, em seu planejamento, haviam decidido que esse seria um dia para experienciar em sua integridade. Seu último dia, antes do mergulho final. O ritual começava ali.

A grama pinicava gentilmente os seus pés descalços enquanto colhiam os ramos de flores. Valentina poderia ter zoado o quanto elas pareciam umas hippies gratiluz, se achando as ninfas dos bosques desfilando peladas pelo campo. Se fosse um dia normal, talvez. Hoje, entretanto, nenhuma das duas sentia a menor necessidade de falar. Mal precisavam, dado o nível de intimidade de sua conexão, embora ainda adorassem tagarelar juntas, como amavam tudo aquilo que, em tese, eram “obrigadas” a fazer juntas desde que se decidiram a dar início a essa jornada. Mas o dia parecia pedir uma reflexão silenciosa, quase religiosa. Não apenas entre elas, mas de cada uma consigo mesma, como as individualidades que, acima de tudo, elas ainda eram. Elas eram Astrid. Elas eram Valentina. E elas eram alguma coisa nova e bela que nasceu (ou nascia) dessa fusão tão voluntária, que voluntariamente almejava deixar de ser voluntária. E tudo isso parecia, por vezes, tão grande e tão estranho, que as fazia perder o fôlego. Criaturinhas tão frágeis e pequenas, diante do mistério.

Em parte foi por isso que decidiram tirar a velha corrente dourada da aposentadoria. Uma necessidade instintiva de reabrir aquele “espaço”, como um tomar de fôlego, antes do mergulho profundo. Queriam lembrar do mal estar de só serem capazes de se sentir através de um pedaço frio de metal. De observarem uma à outra de uma relativa distância, e repararem como os passos da companheira pareciam hesitantes, os movimentos pouco graciosos, como se seus corpos sequer conseguissem se equilibrar apropriadamente sem compartilhar do centro de gravidade. Seriam capazes de se readaptar de novo? Tão rápido e tão facilmente quanto não deveria ter sido, mas foi? O tempo talvez dissesse. Se, por acaso, essa resposta ainda lhes interessasse, o que definitivamente não era mais o caso. Se é que algum dia foi.

Havia também razões de ordem mais prática. A corrente seria um paliativo razoável até que tudo estivesse pronto para o ritual de mais tarde, à noite, depois de terem passado a maior parte do dia anterior envolvidas no complexo e doloroso procedimento de remoção da cola que as unia. Haviam passado por isso tantas vezes nesses últimos meses, terminando sempre devidamente grudadas de novo, por alguma outra parte do corpo. Mas essa seria a última vez, e exigia uma preparação não tão afobada. Tudo teria de ser perfeito. Enquanto levavam as flores para dentro da casa e começavam a fazer os arranjos ao redor do círculo previamente preparado na sala, suas mentes começaram a vagar por tudo o que lhes havia acontecido desde que o mundo testemunhou a sua primeira performance de união. Momentos bons, momentos ruins. Momentos estranhos e inesperados. Momentos de júbilo e incerteza. E, acima de tudo, o momento em que Carla mencionou pela primeira vez aquela bizarra palavra.

“Anastomose. Já ouviram falar?”

Ela lhes servira não aquele café que havia prometido, mas sim um cappuccino inacreditável, que incendiou a casa com um aroma inebriante. Valentina e Astrid mal podiam acreditar. Ambas responderam com um sinal de não.

“Então,” seguiu Carla, “Eu trabalho com isso. Quer dizer, entre outras coisas.”

“É uma doença?” perguntou Astrid, segurando a xícara com ambas as mãos.

“Uma cura.” declarou Carla, sentando-se, dessa vez não entre as duas, mas de frente pra elas, recostando-se no outro sofá. “Ou ao menos é pra isso que tentamos usá-la.”

“Está ficando interessante!” Valentina exclamou.

“Vão vendo!” disse Carla, tomando um gole do cappuccino, “Caramba, acertei mesmo!” lambeu os lábios, “Onde eu estava?”

“Prestes a parar de graça, miga.” riu Valentina. Astrid lhe deu um cutucão. “Ei, tô zoando!”

“Ok”, Carla coloca a xícara no carpete, entre elas, “Deixa ver como posso simplificar isso…” juntou as mãos em frente ao rosto. “Assim: células se reproduzem, tecidos se regeneram, ok? E crescem, se desenvolvem, criam sistemas, que se interligam a outros sistemas, vida.”

Ela gesticulava ao falar e, pouco a pouco, ia se expressando de forma mais apaixonada. As duas se sentiam como estudantes de escola, diante da sua professora favorita. Valentina pensava: “Essa é a minha nerdzinha.”

"Anastomose", ela prossegue, “se refere à interligação entre esses sistemas, entre os vasos sanguíneos, artérias, capilares, os canais que se enredam e se tornam parte de um único sistema. Mas, em medicina, o termo também se refere a certos tipos de operação cirúrgica nos quais os órgãos e outras partes do corpo são costurados, ligados, unidos.”

Tanto naquela noite, quanto agora, enquanto vão preparando o espaço que lhes servirá de palco para a sua cerimônia planejada, Valentina e Astrid se sentem estremecer diante do rumo que aquele discurso estava tomando. Uma sensação de excitação misturada ao medo, que nem mesmo o tempo, e o aprofundamento da compreensão daquelas palavras, chegaram de fato a dissipar. Deviam estar de olhos arregalados e com caras impagáveis, porque Carla fez uma pausa e lhes deu um sorriso, antes de continuar:

“Claro que, até agora, estamos nos referindo a um único organismo. Mas o termo tem usos mais amplos que, de um modo ou de outro, acabam convergindo. A palavra também é usada para se referir a espécies que desenvolvem relações simbióticas tão profundas entre si que acabam se tornando, para todos os efeitos, uma coisa só.”

Astrid lembra de se remexer, inquieta, esquecendo por um instante dos pés colados. Por um breve momento as duas quase se desequilibraram, o que era raro. Ela sentiu as solas dos pés de Valentina se arrepiaram, repuxando a cola que as unia.

“Gente, não esqueçam que estou simplificando pra caramba um negócio que é cheio de nuances, tá?”, alertou Carla. “Vamos dar um passo atrás.” deu um sorrisinho de canto de lábio, “Se vocês fizeram a lição de casa com o afinco de costume no que se refere a colas e adesivos, então devem ter topado com adesivos cirúrgicos, né? Colas para cicatrizar feridas e para uso em operações.”

“Sem a necessidade de pontos.” comentou Astrid. Valentina olhou pra ela, em cumplicidade.

“Isso.” confirmou Carla, “E muito mais do que isso. Colas cirúrgicas, em princípio, não são tão diferentes do que quer que estejam usando aí. Algum adesivo à base de cianoacrilato. Claro que, no contexto médico, rola um refinamento bem maior nas fórmulas para tornar seu uso o mais seguro possível, biologicamente falando.”

Ela tomou mais um gole do cappuccino antes de continuar.

“Pois bem, é com isso que eu trabalho. Essa tem sido a minha pesquisa desde a época da pós-graduação. Eu… e minha equipe, claro, as melhores do mundo,” fez um brinde com o cappuccino, “tentamos ir além desse ‘mais seguro possível. Combinando, biologicamente (e, ouso dizer, filosoficamente), as técnicas associadas a adesivos cirúrgicos com base em cianoacrilato com os princípios de funcionamento da anastomose.”

Os dedos do pé de Valentina apertaram os de Astrid no que deveria ser um sinal discreto. Carla, obviamente, notou.

“Agora,” continuou, “Muita calma nessa hora.” ajeitou-se no carpete, cruzando as pernas e se inclinando na direção delas, “O que a gente tenta fazer… o que já fizemos, na real, ainda que de forma experimental, é desenvolver um adesivo que funciona como um catalisador do processo natural de anastomose. Que estimula as células a intensificar e extrapolar os seus parâmetros de replicação e regeneração, de modo que, naturalmente, tecidos rompidos se reconectem, feridas cicatrizem e órgãos transplantados se integrem ao corpo sem ativar os mecanismos internos de rejeição.”

“Então,” Astrid se lembra de interromper, “já não estamos mais falando no contexto de apenas um único organismo. Tipo, órgãos transplantados…”

“Garota esperta.” Carla brinca, se dirigindo a Valentina, que confirma:

“Ela compensa a minha lerdeza. Mas, Carla, isso que você tá falando…”

“Segura aí, deixa eu fechar!” interrompe Carla. “Sei que já está ficando claro onde eu vou chegar, mas é importante que duas coisas fiquem muito claras. Primeiro, não estamos falando de cirurgia aqui, estamos falando de um adesivo. Um adesivo extremamente forte e desenvolvido especialmente para atuar sobre o tecido vivo. Segundo, a “propriedade” desse adesivo que realmente nos interessa aqui, não era o foco da pesquisa. Ao menos, não necessariamente. Era tipo um efeito colateral, que, a princípio, não interessaria a ninguém e, por isso, mal foi estudado. Quer dizer… exceto por mim… e mais nesses últimos… tipo… meses.

Valentina ri ao se lembrar daquele momento. Astrid, distante apenas por uma corrente, olha pra ela e saca exatamente onde os seus pensamentos a levaram. Ela passa a margarina no pão e leva até a boca da parceira, com um sorriso cúmplice. As duas sentadas frente a frente na nova banqueta da cozinha, recentemente adaptada para os dias que virão. Elas se aproximam, deslizando, até encostarem seus ventres, e Astrid lambe a margarida do cantinho dos lábios de Valentina. Seu último café da manhã, antes da derradeira união.

“Sua filha de uma figa!” Valentina gritou naquela noite, rindo e dando chutinhos carinhosos nas pernas de Carla, enquanto Astrid protestava: “Val, não, não me faz chutar ela, tadinha!”

“Você sabia como fazer, sua tratante! Sempre soube!” dizia Valentina, “Eu devia imaginar!”

“Não, não sabia!” corrigiu Carla, sem se abalar, mas, no fundo, adorando os chutinhos das duas. “Admito que a coisa passou pela minha cabeça. Desde a primeira consulta. Mas eu achava loucura, lembram? Que tipo de médica eu seria?”

“Do tipo que, ‘ousa dizer’ que faz pesquisa biológica filosoficamente.” declara Astrid.

Carla deixou o queixo cair, e se voltou para Valentina: “Você não merece ela! Sério!”

“Acredite,” disse Valentina, “Ela é que me merece!” As três riem.

“Mas, gente,” retoma Carla, “é sério, vamos com calma. Quero que tenham clareza do que estamos falando aqui.” Ela toma mais um gole do cappuccino.

“Deixando as tecnicalidades de lado, o adesivo funciona, em princípio, como uma cola de cianoacrilato qualquer. A gente aplica nas duas porções de tecido que queremos conectar e elas grudam, inicialmente pela ação da cola em si. Mas, imediatamente, o adesivo começa a se dissolver e se reintegrar às células propriamente ditas, ativando e estimulando as suas funções regenerativas, ao mesmo tempo em que inibe o mecanismo de rejeição. Trocando em miúdos, as células não mais se importam se estão anastomosando no seu sistema de origem ou não. Na região afetada pelo adesivo, tudo se confunde, tudo se torna a mesma coisa. Tecidos que não faziam parte de um mesmo sistema, simplesmente cicatrizam juntos. Se mesclam, se conectam, se anastomosam. E passam a funcionar como uma coisa só. Os resultados experimentais que temos obtido em transplantes são extraordinários! A rejeição se torna coisa do passado, o organismo anastomosa o novo órgão como se sempre tivesse estado lá.”

“Mas não há o risco disso virar um câncer?”, pergunta Valentina.

“Sempre houve,” responde Carla, “e é por isso que vocês nunca ouviram falar de nada disso até hoje. Os resultados só serão publicados quando todas as partes envolvidas estiverem, no mínimo, 90% satisfeitas de que os riscos de câncer são controláveis. Mas, cá entre nós,” ela cochicha, “eu sei que são! Já fomos longe demais pra que eu ainda tenha dúvidas.”

“Mas, na real, ainda estamos falando de cirurgias, não?” questionou Astrid.

“Sim!” Carla se aproxima mais delas. “É aí que entra o fator inesperado e não tão estudado de que falei. Lembram que falei que o adesivo faz as células não se importarem se estão se anastomosando no seu próprio sistema ou não? Bem, isso vale para todas as células. Em qualquer tipo de tecido. Interno ou externo. Se eu colar as minhas mãos juntas, e deixar que fiquem assim por tempo suficiente para que o adesivo se decomponha e se integre aos tecidos, as palmas ‘cicatrizarão’ juntas! Haverá uma nova conexão entre meus dois braços.”

Mesmo depois de todo esse tempo, Astrid e Valentina ainda podem sentir a falta de ar que sentiram naquela noite, conforme as implicações daquilo que Carla lhes dizia iam ficando cada vez mais claras. Um momento de silêncio, e uma delas perguntou, quase num sussurro: “E se fosse a mão de outra pessoa?”

“Em teoria,” Carla respondeu, “os tecidos alterados pelo adesivo não ‘se importariam’, e a anastomose aconteceria do mesmo jeito.”

“Pelo amor da Deusa, Carla,” balbuciou Valentina, depois de um momento, “Tem noção do que está nos dizendo?”

“Você pode nos transformar em gêmeas siamesas…” sussurrou Astrid, num fiapo de voz.

Gêmeas siamesas. Sentadas agora no sofá, com as pernas cruzadas juntas e entrelaçadas, Astrid e Valentina folheiam seus velhos álbuns de recortes, dos tempos em que as crianças ainda faziam seus álbuns em papel, olhando as imagens das irmãs siamesas que viveram e morreram em todo o globo. Daisy e Violet. Carmen e Lupita, Abby e Brittany. Tantas e tantas. Imagens aflitivas, imagens fofas, imagens tristes. Nenhuma delas teve uma escolha. As duas ainda tinham, mas tudo que queriam era deixar de ter. Era estranho e contraditório. E mesmo hoje, essa estranheza pairava no ar, ameaçando engolfa-las, intensificando o seu senso de urgência. O mesmo senso que a linda Carla, sempre se preocupou tanto em tentar balancear.

“Gente, devagar!” ela pediu, naquela noite. “Eu disse, em teoria. Quase não foi estudado, lembram? E por que seria? Que uso isso poderia ter? Quem se interessaria por uma coisa dessas? Quando na vida eu poderia imaginar que um dia estaria sentada num carpete, tomando cappuccino com duas doidas que realmente querem se tornar irmãs siamesas?!

Valentina levantou a xícara num brinde. Astrid estava quase pasma demais pra reagir, mas se ligou, e fez o mesmo.

“Duas doidas que eu amo.” riu Carla, brindando também. “Mas, gente, o lance é que não sei dizer até que ponto isso funcionaria. Ninguém sabe.”

“Mas deve ter uma ideia, Carla, ou não estaria abrindo o jogo agora.”, provocou Valentina.

Astrid sempre se perguntava o que teria sido delas sem Carla. Ainda que, superficialmente, ela mais parecesse uma testemunha neutra, limitada à função de reafirmar constantemente o quanto tudo estava indo de acordo com planos que ela mesma sequer endossava. Mas Astrid sabia que era mais do que isso. Seu olhar lhes dava forças. Seduzi-la a fazer parte daquela história era o seu reservatório de fé para os momentos mais sombrios. Por isso que o jeito debochado com que Valentina tendia a tratá-la, às vezes a feria. Ainda que soubesse que a Carla mesmo não ligava. Afinal, elas tinham história. Uma história da qual Astrid não chegara a fazer parte.

Agora, que observava Valentina em silêncio, como gostava tanto de fazer quando ela se distraia, dessa vez com as figuras recortadas das siamesas fictícias que tanto fizeram parte das suas fantasias de adolescência (Ping & Jing, Dominique & Danielle, Pim & Ploy, e, oh, as Irmãs Fontana!), ela ficava imaginando se, antes de se conhecerem, Valentina não teria imaginado que seria Carla que acabaria embarcando nessa aventura com ela. Será? Bom, essa seria uma das poucas coisas que Astrid sabia que nunca perguntaria. Elas tinham, afinal, os seus cantinhos secretos, como deveria ser. E, realmente, não se importava. Até porque, nunca teria dado certo. Afinal, Carla tinha Júlia. Como Valentina tinha a ela. E ela, por sua vez, tinha ambas, cada uma à sua maneira. O mundo não poderia ser mais perfeito.

Naquela noite, Carla parecia particularmente linda, sentada ali, na frente delas, de pernas cruzadas, na doce penumbra da noite que caía. Ela se recostou no sofá depois de ouvir a pergunta de Valentina e limpou os óculos na camiseta, como sempre fazia quando achava que era hora de mudar o tom da conversa.

“Val,” começou, enfim, “ideia eu tenho muitas. É o que não me falta. Se fazem sentido? Aí é que está!”

Fez uma pausa, e sorriu, olhando para elas com uma expressão de profundo carinho.

“Querem a opinião da médica-pesquisadora?” retomou, “Tudo que acabei de dizer não faz o menor sentido. Não haveria motivo pra cientista alguma sequer dar atenção para uma coisa dessas. A não ser, talvez, pra desenvolver formas de tratamento para o caso de acidentes. Acidentes, sacam? Tipo uma cirurgiã grudada numa paciente, ou algo assim. Um infortúnio. Com consequências possivelmente traumáticas e desfigurantes. Dor, sabe? Agonia, essas coisas.” deu de ombros.

“Agora” prosseguiu, “querem saber o que eu realmente acho que vai acontecer? Acho que vocês vão aplicar meu adesivo em alguma parte do corpo, que eu, sinceramente, torço para que não seja as solas dos pés.” As duas riram, ruborizadas, mexendo os dedinhos dos pés. “Vão pressionar essas áreas juntas. O cianoacrilato vai agir quase instantaneamente, grudando a pele. E aí vocês vão passar algumas horas, tentando se mover o mínimo possível, enquanto o adesivo penetra nas áreas aplicadas, se integrando aos tecidos e promovendo o processo de anastomose.”

Valentina se lembra de como aquela conversa parecia cada vez mais um sonho. Estava com medo. Medo de acreditar e acordar sozinha na cama, como naquela noite terrível. Tentava esconder de Astrid o quanto aquilo ainda a afetava, mas claro que ela já sabia, pois naquele momento apertou sua mão com força, sem nem precisar desviar os olhos de Carla. E agora, enquanto a aflição ameaçava lhe voltar, ela se virava para Astrid e já a encontrara a postos, olhando pra ela, com aquela expressão que não precisava de palavras. Valentina a beijou e apertou seu rosto contra o dela, enquanto Astrid a abraçava e o livro de recortes caía do colo delas. Nunca! Nunca mais usariam aquela corrente dourada gigantesca. Nunca mais estariam a um milímetro sequer uma da outra.

“E aí,” continuou Carla, “passado esse tempo, talvez com um pouco mais de estabilidade e amplitude depois de uns dias, não haverá mais adesivo. O composto terá sido inteiramente absorvido e metabolizado pelos seus organismos, e tudo que restará é uma conexão física direta, uma nova parte de seus corpos, podemos dizer, partilhada por ambas, com fibras, músculos, capilares sanguíneos e, quem sabe, talvez até algumas terminações nervosas.”

Por um momento, rolou silêncio. Tanto Astrid quanto Valentina tentaram achar alguma coisa para dizer, para perguntar, para se expressar, mas nada que desse conta lhes ocorreu.

“Alguém quer mais cappuccino?” Carla perguntou.

“Sim, por favor!” as duas responderam.

O telefone toca, afastando as lembranças. Valentina e Astrid largam os álbuns no sofá e vão até a cozinha, onde deixaram o celular. Não tinham o hábito de atender chamadas na hora, mas dessa vez já imaginavam quem deveria ser. Até que demorou, eram dez da manhã.

“Oi, Carla!” atenderam ambas, com toda fofura, ainda que com as vozes um tanto pastosas depois de mais de doze horas sem precisar falar.

“Bom dia, Duas!” Carla falou, parecendo particularmente angelical, sob o reflexo do Sol da manhã ao telefone. Devia estar ligando da sacada. “Desculpa ligar de madrugada,” ironizou, “Mas achei que hoje seria uma exceção, por motivos óbvios.”

“Levantamos às seis, acredite se quiser.” Valentina falou.

“Teria orgulho de nós!” exclamou Astrid, empolgada.

“Mas dormiram bem?” perguntou Carla, “Digo, com toda a excitação e tal.”

“Até que sim.” disse Astrid.

“Que bom.” emendou Carla, “Então, só ligando pra ver se tá tudo ok, se vocês têm alguma dúvida de última hora… e…”

“Não precisa, Carla.” disse Valentina, no tom mais doce possível. “Sério.”

“Pode ficar tranquila.” completou Astrid. “Você já ajudou demais, querida. Tá tudo explicado direitinho.”

“Agora é com a gente.” fechou Valentina, dando uma piscadela.

“Eu sei, eu sei.” disse Carla, “Só pra ter certeza. Sei que é uma coisa íntima demais, mas… seria mais seguro com presença médica, né? Eu ficaria mais sossegada… só pro caso de, vocês sabem… qualquer coisa der errado.”

“Se qualquer coisa der errado…” começou Valentina.

“...sabemos que você está a uma chamada de distância.” completou Astrid.

“Podem apostar.” disse Carla. “Eu vou correndo.”

“A gente sabe.” murmurou Valentina. “Amamos você.”

“Amamos demais!” repetiu Astrid.

“E eu amo vocês.” disse Carla. “Me liguem amanhã, tá? Pra contar que tudo correu bem no seu ritual.”

“Prometemos!” exclamou Valentina.

“Vai correr tudo bem.” Astrid diz. “Você sabe que vai.”

“É.. eu sei.” sussurrou Carla. “Eu sei.”

“Dá um beijo na Júlia por nós.” diz Valentina. “Um de cada, claro.”

“Que tal dúzias de cada?” riu Carla. “Beijo, meninas. Fiquem com a Deusa.”

Elas desligam, as duas admiradas e encantadas com a sinceridade desse último comentário da ateia inveterada. Por um momento, a enormidade do que se preparavam pra fazer as atravessa, lhes tirando o fôlego. Ameaçando, agora que o silêncio foi brevemente quebrado, explodir num palavrório de amenidades espirituosas que só serviriam para abafar a dúvida, o medo e a insegurança. Mas não há mais nada a dizer que já não tenha sido dito e redito nos últimos meses. Entre elas. Com Carla. E até mesmo com Júlia, que se tornara cada vez mais “da casa” desde que passara a acompanhar Carla em rigorosamente todas as visitas.

“Reparou que agora elas nunca soltam as mãos?” Valentina cutucou Astrid, certa vez, numa das noitadas mais recentes. “Será?” Astrid cochichou de volta.

Mas, de início, Júlia estava mais para uma presença tímida e muda, que só alguém muito ligada notaria ter algo a mais com Carla do que um mero relacionamento fraterno. Prestava atenção a cada detalhe das conversas das três, fascinada a ponto de esquecer, de vez em quando, que não era lá muito polido ficar encarando a parte do corpo pela qual as anfitriãs calhassem de estar grudadas no dia. Valentina, claro, não resistia a dar umas zoadas, mas a moça ficava tão completamente sem graça que até ela ficou com pena.

“Não tinha me dito que ela era tão linda, Val.” comentou Astrid enquanto varriam a varanda, no dia seguinte à primeira visita. “E eu nunca imaginaria que ela era negra! Tinha imaginado uma loirinha quase transparente, tipo a Carla.”

“Irmã de criação, lembra?” corrigiu Valentina, se virando pra olhá-la no rosto. Era a semana de experimentação dos prós e contras de ter as nádegas grudadas. “Genética não tem nada a ver com o caso.” riu. “Ela foi adotada quando Carla era um bebê. As duas eram bebês, na real. Têm exatamente a mesma idade, como nós.”

“Disse que ela é uma historiadora?” perguntou Astrid, empilhando as folhas secas.

“Isso.” respondeu Valentina. “Que eu saiba, tão respeitada quanto a irmã, mas com fama de ser meio excêntrica.”

“Excêntrica, é?” e ficou com isso na cabeça, como um pressentimento de que aquela figura meiga e silenciosa ainda teria muito a dizer. Quando se sentisse pronta.

Não que, nesse meio tempo, houvesse muita margem para se preocupar com mais alguém ficando pronta além delas. Carla, como de praxe, as aconselhou a ir devagar. A não ter pressa e tirarem um tempo para refletir e experimentar as várias formas alternativas com que o adesivo especial poderia, enfim, ser usado. Por mais que a união permanente sempre tivesse sido a sua meta final, a palavra “definitivo” nunca as atingira com tanto peso quanto o fazia agora.

“Vocês se acostumaram…” Carla tentava alertar de várias formas diferentes desde a noite daquela primeira conversa, “a flertar com a ideia de ‘permanente’, de ‘para sempre’, de ‘definitivo’. Mas a verdade é que sabiam que, a qualquer momento, podiam pegar as chaves e largar as algemas para trás. Ou, na pior das hipóteses, comprar uma lima.”

Ela riu, tentando manter a conversa leve. O que era de praxe quando tinha a intenção de falar de um assunto que considerava sério. As duas flutuavam diante dela na piscina, como duas sereias siamesas. Ou uma magnífica lula de duas cabeças, movendo graciosamente os seus oito membros em todas as direções, a partir do eixo central das costas unidas.

“Mesmo com cola comum já não é mais tão simples assim.” observou Valentina, de forma um tanto desnecessária, afinal já fazia um tempo que Carla as ajudava a dissolver a cola sempre que experimentavam uma parte do corpo que não lhes dava tanta margem para fazer isso sozinhas.

“Ainda é mais simples do que cirurgia, amiga.” fulminou Carla. “Que será a única forma de tentar, vejam bem, tentar reverter o processo de anastomose, uma vez que tenha sido feito até o fim.”

“Sabe que não vamos voltar atrás, Carla.” declarou Astrid, muito séria, girando para a beira da piscina onde Carla estava deitada de bruços, tomando sol.

“Quanto a isso não tenho dúvida.” ela sorriu, “Mas podem, sim, vir a se arrepender da forma como isso será feito. Se querem saber,” ela se virou de lado, apoiando-se com o cotovelo, a mão espalmada no rosto, “não tinha pensado nisso antes, mas acho que foi muito oportuno ter lhes contado sobre o adesivo bem no dia em que estavam grudadas daquele jeito.”

“Que jeito?” perguntou Júlia, estendida na espreguiçadeira do outro lado da piscina. Isso foi na época que ela ainda tendia a manter uma distância discreta de Carla, quando estavam na presença das suas amigas excêntricas.

“Pelas solas dos pés, Júlia.” Valentina contou, rindo ao ver o queixo dela cair. “Essa filha da mãe da sua irmã nunca vai nos deixar esquecer disso.”

“Mas como andavam?” gaguejou Júlia.

“Não andavam!” zoou Carla. “E podem ter certeza que não vou deixar vocês esquecerem, suas tchongas de uma figa! Ou vai sobrar pra mim tentar consertar a merda que inventarem de fazer!”

As duas sorriem ao se lembrar não só dessa conversa à beira da piscina, mas da expressão de perplexidade fascinada com que Carla espiava os pés grudados delas balançando no ar, quando Astrid se deitou de bruços no carpete com Valentina largada de costas sobre ela, já quase na madrugada daquela longa noite que passaram discutindo todas as possibilidades. Essa sempre foi a tônica com Carla: a perplexidade misturada com fascínio, que levava ao comedimento e a um extremo cuidado que mal conseguia disfarçar o tesão que atravessava a tudo e a todas. Era por isso que se entendiam, e chegaram até ali.

Tinham plena consciência do quanto ela devia estar se arriscando, ainda que mudasse charmosamente de assunto sempre que tentavam levantar a questão. Limitou-se a lhes passar algumas papeladas para assinarem autorizando-a a levar a cabo o “experimento”, e assumindo a total responsabilidade por sua livre disposição de participarem dele. Não que achassem que serviria de alguma coisa caso algo desse errado, ou mesmo se, porventura, elas decidissem traí-la no futuro. Tal nível de confiança chegava a ser atordoante.

E assim, seguiram suas instruções à risca, e passaram os últimos meses num processo de experimentação ainda mais intenso e cuidadoso do que tudo o que já haviam se proposto até então. Com livre acesso às amostras de adesivo à base de cianoacrilato fornecidas por Carla, mais seguras e confiáveis do que qualquer coisa que pudessem conseguir por conta própria, Valentina e Astrid se puseram a testar os limites da sua famosa intercambialidade, tentando esgotar todas as possibilidades e antecipar ao máximo quaisquer imprevistos que cada uma pudesse vir a lhes acarretar.

Passaram dias, ora grudadas pelos quadris, ora pelos ombros, pelas costas, pelos ventres, levando em conta as limitações de movimento, de funcionalidade, o conforto, o prazer. Num primeiro momento, continuaram indo trabalhar regularmente, até para avaliar o impacto que cada configuração traria no contexto do convívio social. Mas logo se tornou mais confortável fecharem suas obrigações e se afastarem por um tempo, num tipo de retiro auto-imposto.

Foi quando brincaram com possibilidades mais esdrúxulas, ou mesmo extremas, às vezes só para reafirmar quão pouco seriam sustentáveis. Foi hilário passarem alguns dias coladas uma com a barriga nas costas da outra (e depois trocando), se sentindo como um trenzinho humano. E insano quando colaram as virilhas juntas numa posição que as mantinha, para todos os efeitos, num estado de tribadismo permanente. Que era inviável, não havia dúvida, mas profundamente esclarecedor, em múltiplos níveis.

“Seja qual for a posição ou a parte do corpo,” Astrid dizia, tomando um gole do vinho para ajudar o fondue a descer, “sempre haverá um prazer e uma renúncia.”

“Então o ponto seria um prazer que compensasse a renúncia?”, perguntava Júlia, do outro lado da mesa, ao lado de Carla.

“Está mais para com qual renúncia somos capazes de lidar.” explicou Valentina. “O restante é… manejável.”

“Sei, mas…” Júlia hesitou. A naturalidade com que elas pareciam encarar toda e qualquer pergunta sobre seu peculiar relacionamento era tão convidativa que, cada vez mais, ela se esquecia da sua timidez natural. Olhou para Carla em busca de algum sinal de ter passado dos limites, mas só encontrou um ar de “Vai lá, agora termina.” Respirou fundo:

“Tipo, não escolheriam uma posição… permanente, quero dizer… em que não tivesse mais como vocês… Sabem, né?”

“Trepar, você quer dizer?” perguntou Valentina, com um sorrisinho maroto. Júlia se encolheu toda, mas sustentou:

“Seria uma renúncia e tanto, não?”

“Por outro lado há posições em que acabaríamos implorando pra parar.” comentou Astrid, no tom mais casual possível. As quatro explodiram a gargalhar.

“Falando sério, Júlia,” retomou Valentina, enxugando as lágrimas de tanto rir, “Claro que isso entra na equação, mas, acredite, não é o que mais pesa.”

“É a união, saca?” disse Astrid. “Vai além disso. Ok, sexo é ótimo, mas isso” fez um gesto indicando os quadris grudados das duas, “isso vai muito além.”

Júlia sentiu a mão de Carla apertar a sua com ainda mais força, debaixo da mesa, ambas ainda inseguras demais para expor o gesto abertamente. Deu uma risadinha quando uma imagem repentina lhe passou pela cabeça.

“Que foi?” perguntou Astrid.

“Nada!” retrucou sem graça, mas cada vez mais a vontade. “Só me passou pela cabeça que não tem muitas posições que favoreceriam… sabem? Sexo oral…”

“Deusa do céu!” exclamou Carla, encantada, “O que há com você hoje?”

“Só estou curiosa!” brincou Júlia.

“Bem, que posso dizer, Júlia?” admitiu Valentina. “Acho que teríamos que nos conformar em precisar de uma terceira pessoa pra isso.” Deu uma piscadinha.

“Ou uma quarta.” murmurou Astrid, dando de ombros, e provocando mais uma saraivada de gargalhadas.

Foi só mais tarde, naquela hora mágica em que o vinho já atingiu o seu grau ideal e todas já estavam devidamente largadas sobre as almofadas no carpete, que Carla fez a pergunta:

“E aí? O que vocês não dariam conta de renunciar?”

Deitadas lado a lado no carpete com seus quadris grudados e as pernas preguiçosamente jogadas sobre as pernas de Júlia e Carla, Valentina e Astrid fitaram profundamente os olhos azuis da amiga e Valentina deu voz às duas:

“Não queremos ter de usar espelhos para olhar uma para a outra.”

Carla assentiu. Júlia, quase cochilando, mas ainda atenta, se aconchegou melhor à irmã e murmurou, “Isso é tão lindo…”

“Algo mais?” retomou Carla. Dessa vez Astrid respondeu:

“Faria muita falta… se nunca mais pudéssemos nos abraçar.”

“Hmm…” murmurou Carla. “Isso complica as coisas. Não podem se abraçar assim, não é?”

“Não,” disse Valentina, virando-se de lado o máximo que a cola permitia, se enlaçando com Astrid. “Não o bastante.” completou, sorrindo.

“Essa seria uma das configurações mais… manejáveis, para o dia a dia.” refletiu Carla.

“O manejável… não é necessariamente o mais desejável.” comentou Astrid.

“Ou mais satisfatório.” completou Valentina, se aninhando em meio aos cabelos dela.

Carla suspirou, recostando a cabeça no sofá. “Acho que seria bobagem lembrar vocês que até o mais desejável, ou mais satisfatório, pode se tornar um fardo quando sustentado em bases permanentes.”

“Nada que vem de você é bobagem, amore.” respondeu Valentina, acariciando a perna de Carla com seu pé descalço. “A gente tá ligada, você sabe. Temos refletido muito. Mas é o que falei antes: haverá renúncias, seja como for. O lance é tentar restringir as renúncias ao que podemos lidar.”

“Pra não ter que renunciar ao que não daríamos conta.” fechou Astrid, segurando o rosto de Valentina e dando um selinho prolongado nos lábios dela.

Carla acomodou o rosto ao de Júlia, amparado em seu ombro. Os cabelos loiros e negros se misturando num mosaico abstrato em degradê. Apesar das objeções de praxe, nem tentou disfarçar o quanto a resposta lhe agradava.

“Vocês são tão lindas juntas.” murmurou Astrid, deslumbrada pela harmonia do contraste entre as cores de pele das duas.

“Brigada.” sussurrou Carla, se permitindo tomar pelas sensações de uma forma que a muito não conseguia. Júlia sorriu, com os olhos fechados, e se aninhou ainda mais ao corpo da irmã.

“Suponho que já decidiram como vai ser?” perguntou Carla, depois de uma pausa. As duas suspiraram e se re-acomodaram.

“Meio que sim”, disse Valentina, “Acho.”

“Quase.” comentou Astrid.

“Swadhistana.” sussurrou Júlia.

“O que?” perguntou Carla, rindo.

“Swadhistana.” repetiu Júlia, sem abrir os olhos. “Tem que ser. Só pode ser.”

Valentina e Astrid se ergueram um tanto, apoiadas nos cotovelos.

“O chakra?” perguntou Astrid.

“O segundo.” confirmou Júlia, aparentando ainda estar meio dormindo. “O chakra sexual.” colocou a mão no ventre de Carla, espalmando-a até preencher o espaço entre o umbigo e a pélvis. As três observaram, admiradas.

“O chacra umbilical.” sussurrou Júlia, “Só pode ser.”

Carla ergueu os olhos para Val e Astrid, as três se encarando, estupefatas. Nem era preciso perguntar pra saber que Júlia havia, do nada, atingido o alvo. Daquele momento em diante, o que havia sido uma possibilidade carinhosamente cultivada, se tornou uma convicção. E ainda que as experiências continuassem por mais algum tempo, quase que para preservar uma certa programação e um senso de cuidado, no fundo elas nunca mais tiveram dúvidas de como as coisas terminariam. Era como Júlia disse: não tinha como ser de outra forma.

E agora que o entardecer já ia chegando, nesse que, com certeza, era o dia da culminação para toda a sua jornada, Valentina e Astrid sentiam a convicção atravessá-las de uma forma ainda mais pura e contundente. Haviam perdido a noção do tempo, entretidas num jogo quase infantil no quarto onde guardavam a sua velha coleção de correntes, algemas, cordas de shibari, braçadeiras, tornozeleiras, e todos aqueles apetrechos que as tinham mantido unidas nesses quase dois anos de intimidade e convívio.

Passaram a tarde ali, literalmente brincando, como se tivessem encontrado uma velha caixa de brinquedos e quisessem re-experimentar ludicamente todo o processo que as levara até ali. Se algemavam, se amarravam, se acorrentavam, de frente, de lado, de pé ou deitadas, invertidas ou do avesso, sobrepondo objetos e misturando-os das formas mais esdrúxulas e sem noção possíveis, sem ligar se acabariam ficando momentaneamente imobilizadas em alguma posição infame ou ridícula. Se divertiam, por saber que, em breve, não iriam mais precisar de nada daquilo. Nunca mais.

Até que, por fim, se viram sentadas no chão, emaranhadas num verdadeiro nó de braços e pernas e cordas e correntes. Os risos, pouco a pouco, murchando, e uma doce melancolia se abateu sobre elas. Ficaram ali por um tempo, se deixando perder nos olhos uma da outra, até que se deram conta de que a hora havia chegado. Ainda em silêncio, soltaram os nós, abriram as tornozeleiras e braçadeiras, até voltar a ficar apenas com a velha corrente dourada se estendendo entre as duas. E se dirigiram até a sala, onde o círculo previamente traçado ainda as aguardava.

Tinham certa consciência de que havia fofocas no universo das artes sobre a sua aparente estagnação em termos criativos. De que, a partir do momento que se tornaram, para todos os efeitos, uma única artista, sua obra conjunta perdera tudo que as diferenciava enquanto criadoras independentes. Não discordariam, se tais comentários fossem feitos nas suas caras. Desde o começo sabiam que esse era um preço que teriam de estar dispostas a pagar. Arte, afinal, germina da falta, da carência, da fratura, e quanto mais a sua união vingava, em termos emocionais e afetivos, mais claro ficava de que não sentiriam mais sequer a necessidade de se expressarem tanto quanto antes. A longo prazo, poderia sim significar a sua aposentadoria enquanto artistas, mas seria um custo pequeno, afinal, diante da profundidade da realização pessoal e íntima que ambas experimentavam.

Ainda assim, elas se perguntam o que suas críticas mais habituais teriam a dizer se vissem o cenário da sua mais recente, quiçá última, performance. Muito óbvio, talvez? Cafona, sem dúvida. Sorriram ao pensar nisso. Que seria do amor (ou do fetichismo) sem a cafonice? E, afinal, essa era uma obra só para elas. Seu ritual particular, como tantos que vivenciaram entre aquelas paredes desde que tudo isso começou, e não carecia da aprovação, ou do testemunho, de mais ninguém além delas.

As duas deslizam entre os arranjos florais ao redor do círculo, acendendo as velas com toda aquela graça e leveza que tanto as caracterizava, fosse qual fosse a forma ou a parte do corpo que as mantivesse unidas. Essa improbabilidade que nunca sequer tentaram explicar, mas que, entre tantas coisas, lhes garantia a convicção de que, por mais irracional que tudo aquilo parecesse, era mais que apenas uma mera ilusão de seus sentimentos. Um folie a deux, como Carla inicialmente talvez até pensasse. Não, tinham ido longe demais para ter dúvidas. Essa era a hora de selar aquele processo de uma forma que, nem mesmo elas, se quisessem, poderiam recuar. E, decerto, haveria momentos em que iriam querer, momentos de reconsideração e crise, de desarmonia e constrição, intercalados ao gozo do reencontro, da redescoberta, e da reafirmação da profundidade daquela realização.

“Na alegria e na tristeza…” uma delas começa a murmurar.

“Na saúde e na doença…” a outra continua.

“Por todos os dias de nossa vida.” ambas concluem, se ajoelhando uma de frente a outra no centro do círculo, onde uma série de objetos bastante específicos já havia sido previamente disposta.

“O adesivo é inerte na sua condição padrão,” ecoava a voz de Carla nas suas memórias, “não reage à matéria inorgânica. Mas se torna imediatamente volátil ao entrar em contato com tecido vivo. Manuseiem com cuidado, pelo amor da Deusa!”

“Pelo amor da Deusa...” murmuram, cada uma pegando um dos dois curiosos instrumentos, parecidos com rolinhos de pintura, acoplados a um pequeno reservatório plástico.

Uma hesitação. Talvez uma suspensão no tempo. Por alguns momentos, elas se encaram, imóveis, cada uma segurando seu pequeno instrumento com a respectiva mão acorrentada ao pulso da outra. Pode ser um tempo para se verem. Para se reconhecerem, quase como se, por um instante, voltassem a ser aquelas duas estranhas que se encontraram em uma vernissage chata, e escapuliram juntas para admirar uma estátua de bailarinas siamesas. O quanto haviam mudado desde então? O excesso de piercings sumira, para evitar escoriar a pele uma da outra, mas o mosaico de tatuagens continuava sendo a maior diferenciação entre aqueles corpos que, em tantos outros aspectos, bem que poderiam pertencer a irmãs gêmeas. Os cabelos ganharam volume e, no caso de Astrid, homogeneidade, sem maiores razões exceto o prazer que sentiam quando deixavam que se emaranhassem. Mas era nos olhos que as maiores mudanças se deixavam perceber. Na época, havia neles um vazio, um vácuo que sua arte tentava desesperadamente preencher. Agora, quando olhavam nos olhos uma da outra, viam a si mesmas, e o gozo dessa corroboração superava os últimos resquícios de receio que ainda pudesse sentir.

“Valentina… Velvet…” proclamou Astrid, com um sorriso doce.

“Astrid… Vexley…” respondeu Valentina, o peito explodindo de júbilo.

E com um movimento suave, sincronizado e exaustivamente ensaiado, cada uma usa o seu pequeno rolo para preencher a região do chacra umbilical da companheira, do umbigo até a pélvis, com uma fina camada do adesivo. E sem pressa, mas igualmente sem hesitação, os instrumentos são deixados de lado e, num gesto rápido, a corrente dourada é destrancada e jogada para fora do círculo. Há um instante de vertigem, quando as duas se veem, por um, momento, desconectadas, mas diferente da noite terrível de meses atrás, não há o profundo horror da separação. Algo parece se sustentar entre elas, naquele pouco mais de um palmo de espaço entre os seus ventres. As regiões onde o adesivo foi aplicado, parecem pulsar e emanar calor. Seria uma impressão? Uma mera reação fisiológica a uma ação química? Ou estavam realmente se sentindo puxar uma em direção a outra, como se os seus ventres se tornassem ímãs, suave e inexoravelmente atraindo-se entre si? Valentina e Astrid se olham, maravilhadas, as faces tomadas por um êxtase que até tinham antecipado, mas para o qual jamais poderiam estar de fato preparadas. Entenderam que não precisariam se preocupar com o único momento do qual tinham receio. O momento em que deveriam juntar os seus ventres da forma mais rápida, exata e simétrica possível, antes que o adesivo tivesse tempo para agir. Bastava se renderem àquele implacável magnetismo e deixar que seus chakras se atraíssem sozinhos, quase que a despeito de si mesmas. E seria inevitável. Sempre foi inevitável. Elas só tinham que estar prontas. E, depois de toda essa longa jornada juntas, elas estavam mais do que prontas.

“…seja uma comigo!” disseram… e se deixaram ir.

Houve um choque. Podiam sentir o adesivo reagindo instantaneamente. Se abraçaram, com um ímpeto desesperado, os olhos fechados, quase sem fôlego. Queimava, pulsava, ardia, mas, ao mesmo tempo, emanava ondas de calor e regozijo que preenchiam os seus corpos com um gozo ardente e redentor. Moviam as suas pélvis juntas em uníssono com aquele pulsar, quase sem perceber o que faziam, perdidas num êxtase febril que lhes turvava os sentidos e fazia com que os seus músculos estremecessem. Despencaram sobre o carpete, aos gritos, emaranhadas e quase às convulsões. Rindo, chorando, beijando, mordendo. Os corpos empapados de suor, lágrimas e fluidos. E desfaleceram, sob a luz bruxuleante das velas, que ia minguando conforme a noite avançava.




9. Dando uma Pequena Ajuda pra Miga

Acordaram com o cantar dos pássaros, enquanto a luz do amanhecer se infiltrava pela sala. Valentina abriu os olhos primeiro e se deu conta de que estava deitada de bruços por cima de Astrid, que dormia de costas no carpete. Olhou em volta, por um instante, reconhecendo o terreno, e se embeveceu com o rostinho amassado dela, a poucos centímetros do seu. Tocou os seus lábios com um selinho suave, murmurando um “Bom dia, flor.”, e os lábios de Astrid sorriram de volta, ainda encostados nos dela: “Bom dia… ainda estamos aqui?”

“Estamos, eu… Ah!” Valentina gemeu, atravessada por uma onda de prazer. Astrid tinha se espreguiçado e os movimentos dela pareceram se irradiar para o seu corpo, através das suas pélvis conectadas. Astrid também estremeceu, enlaçando os quadris de Valentina com as pernas, numa atitude reflexa.

“Oh, minha Deusa!” ela gritou. “Isso ainda continua!” As duas se beijam, apaixonadamente, ao sabor da onda que, aos poucos, vai diminuindo, sem, no entanto, passar completamente.

“Tri do céu!” Valentina sussurra ao ouvido de Astrid, se recompondo. “Será que dá pra viver assim pra sempre?”

“Ai, a gente dá um jeito!” exclama Astrid, “A gente sempre dá um jeito!” as duas gargalham, absolutamente deliciadas.

Mais preparadas para sua nova condição, elas se erguem até ficarem sentadas no carpete. A fluidez e a facilidade foram ainda maiores do que de costume. Até mesmo a sua lendária adaptabilidade necessitava de algumas horas até que seus corpos se harmonizassem, mas agora se moviam como se tivessem nascido daquele jeito. Cautelosamente, examinaram a região interconectada em seus ventres, e mesmo que, em teoria, soubessem exatamente o que deveriam esperar, ainda assim, não puderam evitar sentir um calafrio.

“Siamesas…” murmurou Astrid.

Não havia cola. Suas peles não estavam coladas. Não mais. Do umbigo à pélvis, elas eram uma coisa só. Elas se tocam, deslizando as pontas dos dedos pela extensão de pele (e de carne) que ia do ventre de uma até o ventre da outra, e se sentem, novamente, estremecer de prazer. Por quantas horas teriam ficado inconscientes? Oito? Dez? A anastomose tinha ido tão longe quanto poderia ir. Estava feito. Era pra valer. E era definitivo.

“Nós conseguimos, Tri!” Valentina falou, segurando o rosto de Astrid com os olhos cheios de lágrimas. “Nós somos siamesas!”

“Somos.” Astrid balbuciava, com a voz embargada e trêmula, acariciando e beijando cada centímetro do rosto de Valentina, suas faces, seus olhos, seu nariz, sua boca, sabendo que estariam sempre ali, a poucos centímetros dela. “Nada vai nos separar. Nunca mais vamos nos separar.”

“Nada pode nos separar!” exclamava Valentina, em êxtase. “Somos uma! Nós somos uma!”

“Uma.” Astrid falou, fechando os olhos e abraçando Valentina com as pernas e os braços, e sendo prontamente abraçada de volta. E ficaram ali, um tempo, respirando juntas, sentindo a pulsação de uma na outra através de suas pélvis fundidas. Como teriam conseguido viver todo aquele tempo apenas brincando de estar unidas? Parecia inconcebível. Mais do que isso: parecia errado. Era isso que elas tinham que ser. Era isso que sempre foram, mesmo quando uma ainda nem sabia que a outra existia. E, de agora em diante, era isso o que elas sempre seriam.

“Uma.”

E como “uma” já antecipavam o deleite que seria redescobrir suas vidas e seu cotidiano nos dias que estavam por vir, cientes de que não lhes faltaria prática para administrar as tarefas do dia a dia, e os cuidados com a casa e o ateliê, depois de terem passado tanto tempo grudadas quase que daquela mesma forma com os adesivos mais convencionais. Mas logo ficou claro que a coisa seria ainda mais estranha dessa vez.

Mal entraram no chuveiro e já ficaram de cara com a mais absoluta falta até do mais ínfimo sinal de hesitação em seus movimentos. Um braço se estendia pra abrir a ducha, enquanto outro já buscava o sabonete líquido e um terceiro despejava um punhado de xampu na palma da mão de um quarto que, prontamente, se punha a ensaboar a cabeça do corpo que sequer lhe pertencia. E só quando lhes caia a ficha do quanto aquela sequência de ações deveria ser confusa, é que elas congelavam, por um momento, e se encaravam, perplexas.

“Val…” dizia Astrid, ainda ensaboando os cabelos da companheira, sentindo as mãos dela deslizando com a esponja pelas suas costas.

“Eu sei…” Valentina respondia. “Uau!”

“É… uau!” finalizava Astrid, pois não havia, de fato, outra coisa a dizer. Aquilo simplesmente estava acontecendo. Como, elas não sabiam. E, no fundo, mal queriam pensar a respeito. Especialmente com a estonteante sensação da água com espuma escorrendo por entre os seus ventres e estimulando cada pequeno feixe nervoso que havia se formado entre elas. Deusa! Como seria viver assim?

Mas elas nunca iriam esquecer a expressão no rosto de Carla quando ela desceu do carro e viu as duas literalmente correndo na sua direção para recepcioná-la. Ela ficou pálida e, num reflexo, largou a mão de Júlia. Um gesto que as atingira quase como um soco no estômago.

“Foi como se a ficha caísse.” Astrid comentou mais tarde, enquanto as duas se abraçavam na cama. “E o encanto se quebrasse.”

“Não acho que quebrou.” respondeu Valentina, tirando uma mecha do seu cabelo dos olhos de Astrid. “Ela tomou um choque sim. Suponho que sejamos uma aparição estranha. Seria legal se pudéssemos nos ver filmadas, caminhando ou correndo.”

Astrid não parava de pensar em Daisy e Violet Hilton entrando em cena em Freaks. Aquele caminhar gracioso mas, sem dúvida, perturbador para quem não estivesse acostumada. Ou partilhasse dos mesmos fetiches.

“Acho que Carla apenas se convenceu de que estava acostumada conosco.” prosseguiu. “E aí, quando topou com o resultado concreto de tudo o que teorizamos…”

“Não, Tri, sério!” se queixou Valentina. “Você não a conhece a tanto tempo quanto eu. Ela já estava praticamente normal antes que fossem embora.”

“Você acha?” Astrid perguntou, num espasmo, as lágrimas começando a irromper. Valentina a beijou e tentou se mostrar confiante, não apenas pra consolá-la, mas manter a sua própria perturbação sob controle. A verdade era que, pela primeira vez, se sentira como um tipo de aberração durante a visita de Carla e Júlia. Uma criatura de duas cabeças e oito membros, deslizando pela casa como uma gigantesca aranha.

“Ai, devagar aí!” Ela havia exclamado quando Carla examinou as suas pélvis fundidas. Não tanto pela hipersensibilidade (até aí estava amando ser tocada) mas pelo seu velho impulso de escandalizar e tirar sarro. Se sentiu murchar quando Carla deu uma risadinha forçada e retomou o interrogatório médico. Júlia, sentada um pouco atrás, num banquinho, observava fascinada, os olhos brilhando. Mas, ao mesmo tempo, espiava Carla com certa apreensão.

“Não tem o que dizer.” Carla murmurou, aparentemente mais para si mesma, recuando com a banqueta, meio que se abrindo para um quadro geral e se permitindo olhar para as duas a uma certa distância, sentadas como estavam numa das várias banquetas duplas, soldadas frente a frente, que andaram manufaturando no ateliê desde que se decidiram pela sua conjunção final. Ao se deparar com aquelas expressões ansiosas, pareceu se recompor e abriu um sorriso, ainda que seus olhos traíssem o esforço.

“É isso, meninas. Sucesso!” exclamou com um entusiasmo um tanto caricato, “Foi muito… muito além do que eu esperava, eu… Não vou mentir, achei que teria de convencê-las a ir pro hospital, achava que a junção poderia ter saído do controle, que poderia haver sinais de necrose, ou rejeição, mas…” engoliu em seco, “É perfeito… quer dizer, dado o que queriam, é… perfeito…”

“Então, estamos… bem?” perguntou Astrid, cada vez mais insegura. “É… sustentável?”

“Sustentável…” balbuciou Carla, o olhar parecendo vagar por um momento, “Sustentável… sim!” e novamente mais firme. “Deusa, sim! Tem que ser! Não há sequer uma diferenciação clara entre as peles de vocês duas, os músculos parecem integrados, vocês tem controle… digo, ambas, da… área?” elas acenam afirmativamente, “E sensibilidade, claro, o que indica interconexão nervosa… e os tecidos parecem… perfeitamente irrigados…”

“Há troca de sangue entre elas?!” Júlia exclamou mais do que perguntou, pegando Carla de surpresa.

“Há…” Carla respondeu. “Sim, há… olha.” ela aproximou a banqueta e apontou para o que parecia ser uma tênue veia azulada partindo do ventre de Valentina e seguindo adiante pela barriga de Astrid.

“O adesivo fez isso?” perguntou Júlia, sabendo muito bem, mesmo não sendo da área, que aquilo era muito impovável.

“Só posso supor… que sim.” disse Carla, tocando, relutantemente, a veia e sentindo a sua pulsação.

“Mas o tipo sanguíneo delas era… compatível?” Júlia perguntou, num tom de quem imagina estar fazendo uma pergunta boba.

Carla se empertigou: “Evidente! Nunca teria deixado elas seguirem adiante se não fosse!”

“Carla…” Astrid começou, ignorando um olhar suplicante de Valentina. Carla se voltou para ela e entendeu de imediato, mas foi Valentina quem, suspirando, continuou:

“Desculpa, amiga… mentimos pra você nessa.” Ela deu de ombros, numa tentativa vã de fazer parecer que aquilo não era nada, “Mas foi só nisso, eu juro.”

“E deu tudo certo, não é?”, disse Astrid.

Foi um daqueles silêncios que, como se diz, pode-se cortar à faca. Dava pra ler um milhão de considerações tempestuosas se sobrepondo por trás do olhar estático de Carla, em uma sucessão vertiginosa. Seus óculos embaçaram e sua pele nunca pareceu tão pálida. Ela fez menção de falar, umas duas ou três vezes, mas nada saía, até que, por fim, seus ombros relaxaram e ela respirou profundamente, dizendo apenas: “Sim… deu.”

“Não foi bem o primeiro dia que a gente esperava, né?” sorriu Valentina, se acomodando na cama e fazendo pequenos desenhos com as lágrimas pelo rosto de Astrid.

“Foi sim,” corrigiu ela, já mais recomposta, os dedos dos pés brincando com os dedos dos pés de Valentina, “no que nos concerne. Você está feliz, não está?” era uma pergunta, mas soava como uma afirmação.

“Estou completa.” respondeu Valentina.

“Então pronto.” disse Astrid e a beijou. “Isso é um carro?”

Valentina ergueu a cabeça, apoiando-se no cotovelo, prestando atenção. “Deusa, acho que é! Que horas são?”

Astrid se contorceu para pegar o celular no criado ao lado da cama. “Passa das 11, quem poderia ser?”

Elas saltam da cama correndo, vestindo um camisolão recém costurado para cobrir ambas, e, cautelosamente, vão se dirigindo até a sala, acendendo as luzes pelo caminho. O carro, a essa altura, já está estacionado sob a habitual mangueira, apesar de agora não precisar da sombra.

“Carla…” elas dizem, quase ao mesmo tempo, abrindo o vitral para a varanda. Sob a luz do alpendre, ela parecia frágil e trêmula, se aproximando com hesitação, o rosto fortemente marcado por olheiras de quem andou chorando muito.

“Oi.” disse ela, “Ai, gente, desculpa, eu devia te ligado. Que coisa mais idiota!”

“Pára, não fala assim, vem cá.” diz Astrid, dando um passo na direção dela, fazendo com que as pernas de Valentina a acompanhem automaticamente.

“Sério, desculpa.” continuou Carla. “Eu precisava ver vocês, eu…” a voz lhe falhou. Astrid e Valentina a tocam, cada uma num ombro, e ela se deixa abraçar, às lágrimas. “Desculpa… desculpa…”

“Desculpa o que, miga?” Valentina dizia, com doçura. “Vem cá, tá frio aqui fora.”

“A gente vai fazer um chá de camomila pra você.” completou Astrid.

Carla ri, em meio às lágrimas. “Ai, Tri… só você.” e foi se deixando conduzir para dentro.

Já mais calma, sentada na velha poltrona com a xícara de chá de camomila bem segura por ambas as mãos, Carla se permite relaxar enquanto as duas se sentam no carpete, aos seus pés, fazendo carinho em suas coxas por sobre as calças de moleton.

“Vocês estão tão fofinhas aí nessa camisola.” ela ri, soando ainda bastante sensibilizada. “Parecem umas bonequinhas siamesas.”

“Sabe que nunca me senti tão à vontade pra ser fofa como nesse último ano, né?” comenta Valentina. Carla assente, tomando um gole do chá.

“Não sabe o alívio que sinto por ainda nos achar fofas.” desabafa Astrid, se segurando para não chorar.

“Ai, Tri… me perdoa.” Carla diz, voltando a se exasperar, por um momento. “Eu juro que… ai, gente, eu não sei… Tô tão confusa.”

“Calma, miga!” Valentina segura a mão dela. “O que aconteceu? Tá tudo bem com a Júlia?”

“Eu não sei.” ela murmurou. “Minto… está, claro que está!”

“Vocês brigaram?” Valentina pergunta.

“Não,” Carla responde, olhando pra Valentina, “não brigamos, tivemos uma… crise.”

“Por nossa causa?” pergunta Astrid.

“Que? Não!” Carla retruca, de súbito, “Quer dizer… Como assim? Ai, gente, peraí, preciso de espaço, não consigo pensar.” desvencilhou-se das duas e se pôs a andar pela sala. Val e Astrid se entreolham, levantando do carpete, e Valentina começa:

“Carla, o que tá rolando? Pode se abrir com…”

“Isso tá rolando!” Carla exclama, apontando pra elas. “Vocês aí, levantando como se fossem uma coisa só! Não faz sentido! Tá me deixando louca!”

As duas estacam, sem saber o que dizer, ou mesmo se deveriam dizer alguma coisa. Carla põe a mão sobre a testa, cerrando os olhos:

“Desculpa! Não estou brava com vocês, não é culpa sua.” ela respira, tentando organizar os pensamentos, “É isso tudo. Sou eu! O que estou fazendo? Eu não fiz a porra de um exame de sangue! Que merda de médica que eu sou?”

A essa altura estava quase gritando. Astrid e Valentina hesitam, meio que dando um passo pra frente e dois para trás.

“Meu…” suspira Valentina, “sinto muito ter mentido, eu…”

“Não é isso.” Carla dá de ombros, abrindo os olhos. “Vocês fizeram o que tinham que fazer pra ir até o fim com a loucura de vocês. É insano, mas é coerente. E eu? Eu embarquei na pira de vocês. Por que eu embarquei desse jeito na pira de vocês?!”

“Você está arrependida?” Astrid pergunta, timidamente.

Carla fica olhando pra ela por um momento antes de responder, num tom mais baixo e mais calmo.

“Não. Não, eu não me arrependi. Não aqui.” ela aponta o coração. “Mas aqui,” ela espalma a mão na testa novamente, “aqui eu tô pirando. Não faz sentido. A ciência que eu conheço não se aplica a vocês, e ao invés de questionar os motivos disso eu embarco nisso! Ajudo vocês a…” sua voz falha, o rosto contorcido prestes a romper em pranto outra vez, mas ela se recompõe com um gole de chá.

“Era para estarem mortas.” ela murmura. “Têm noção do que acontece com o corpo quando sangue incompatível se mistura? E ao invés disso aí estão vocês! Lindas!” Ela estende o braço pra elas, gesticulando atabalhoadamente. “Lindas…” murmura. “Isso não é ciência.”

“Essa…” Valentina arrisca, cautelosamente, “Essa ficha te caiu quando nos viu pela primeira vez, depois de… você sabe.”

“Você se assustou… com a gente?”, perguntou Astrid.

Carla pareceu refletir. O olhar vagando entre elas e a xícara. “Não…” balbucia, “Não me assustei. E é isso, sabe? Eu deveria. Eu fiz isso com vocês. E não consigo ver isso de outra forma senão… lindo.” A última palavra soa engasgada, e ela continua com dificuldade: “É o que me assusta. Eu não devia…”

Elas arriscam se aproximar. Carla não reage. Fecha os olhos novamente e fica segurando a xícara com ambas as mãos. Valentina toca seu ombro, gentilmente, e Carla agarra a mão dela com força, sem abrir os olhos. Astrid a abraça, apoiando a cabeça no outro ombro.

“Por que?” Carla murmura, “Por que eu quis embarcar nisso?”

Valentina coloca a palma da mão no rosto dela, até ela abrir os olhos, e responde: “Você sabe porque, miga.”

Carla fica encarando Valentina, o olhar perdido, mas não confuso. Deixa-se conduzir de volta ao sofá, onde, dessa vez, as duas se sentam ao seu lado, naquele pose enroladinha que a nova conexão lhes exige. Elas ficam ali, em silêncio, por um tempo, enquanto Carla vai respirando e se acalmando.

“Vocês,” retoma ela, enfim, “não têm ideia do que anda rolando nas baladinhas, né?”

“Baladinhas?” Valentina exclama, pega de surpresa. “Como assim?”

“Imaginei que não.” comenta Carla. “Cada vez mais ermitãs.” ela tira o celular do bolso.

“A gente precisou sumir nos últimos meses, né?” justifica Astrid.

“Eu sei, eu sei.” Carla mostra a tela pra elas, deslizando uma série de imagens de boates, danceterias e clubes noturnos. De início, Val e Astrid não sacaram o que estavam vendo. Até que Valentina solta um:

“Cê tá me zoando!”

A cada foto, era possível reparar em ao menos dois ou três pares de meninas algemadas juntas. Por vezes, com algemas revestidas de material fosforescente, desenhando rastros luminosos em meio ao fervo.

“Onde é isso?” Astrid pergunta.

“Um monte de rolês.” responde Carla. “Algumas fui eu que tirei, outras peguei na rede. É uma tendência.”

“Não creio!” Valentina estava passada. “Desde quando isso tá rolando?”

“Começou a chamar a atenção geral faz poucos meses.”, Carla explica. “Tipo, reportagens, colunista dando palpite, psicólogas, essas coisas. Mas as fotos mais antigas que tirei datam de mais de um ano.”

O queixo de Astrid caiu. Ela havia pego o celular e pulava de uma imagem pra outra, cada vez mais fascinada. “Mas você nunca comentou nada!” falou.

“Quase comentei… várias vezes.” murmura Carla, com uma aparente relutância, e, então, com mais firmeza: “Achei que tocariam no assunto, mais cedo ou mais tarde.”

“Nunca vimos nada disso. Olha isso aqui!” Astrid exclamou, mostrando a foto de duas irmãs gêmeas acorrentadas juntas pelo pescoço.

“Não vimos não. E olha que a gente passava o rodo geral nos nossos tempos de balada.” confabulou Valentina, “Tudo bem que já faz um tempo.”

“Eu lembro.” diz Carla, atenta ao encanto pasmo delas com as fotos. “Na época não se via tanto. Aqui e ali só. Hoje em dia tá praticamente impossível chegar no rolê e não topar com pelo menos duas.”

“Eu tô absurdada!” riu Valentina, o rosto encostado no de Astrid, ambas segurando o celular e rodando as imagens a quatro mãos. Carla ficou em silêncio, observando as duas, por um tempo. O rosto anuviado por uma expressão indecifrável. Tirou o tênis e encolheu as pernas em cima do sofá, apoiando o queixo nos joelhos. Valentina fingia não prestar atenção nela, lhe dando tempo. Por fim, num único fôlego, e tentando soar o mais neutra possível, Carla desabafa:

“Júlia e eu temos dormido todas as noites com os tornozelos atados por um elastiquinho de cabelo.”

As duas se voltam para ela, abandonando o celular no sofá. Carla se vira lentamente pra encará-las, os óculos meio tortos sobre os olhos injetados.

“Mas você já sabia disso, não é?” perguntou diretamente para Valentina.

“Claro, miga.” ela responde, com um sorriso doce. “Digo… não do elastiquinho, mas…”

“Pára!” Carla riu, sacudindo a cabeça, os olhos começando a lacrimejar de novo.

“Que singelo…” murmurou Astrid, legitimamente encantada, mas Valentina se moveu para lhe indicar que era melhor segurar os comentários. Ambas repararam que Carla esfregava o tornozelo, distraidamente. A linha de abrasão do elástico ainda era visível.

“Essa…” começa Valentina, cautelosamente, “é a primeira noite que… não estão juntas?”

Carla faz sinal afirmativo com a cabeça, cerrando os olhos numa careta. Valentina e Astrid se ajeitam melhor no sofá, e Astrid arrisca passar o braço por sobre os ombros dela. Carla relaxa e se deixa envolver.

“Começou como uma brincadeira.” começou. “Uma fantasia. Inspirada em vocês.” voltou-se para elas. “Estávamos tão… felizes, de estar juntas de novo. E ela se encantou tanto com vocês.”

“A ideia foi dela?” Astrid perguntou.

“Ninguém teve a ideia.” Carla divagava, fitando o vazio. “O elastiquinho era dela, claro, ela tem tantos.”

“Aquele cabelo maravilhoso…” comentou Valentina.

“Sim.” Carla sorriu. “Não lembro… não lembro quem colocou o elástico da primeira vez. Era nos pulsos, na época.” explicou, “Mas acho que fui eu que coloquei nos nossos tornozelos.” deu uma olhada em Valentina. “Pés, né? Sabe como é.”

“Sempre tivemos essa em comum.” brinca Valentina. Astrid olha pra ela, com um sorrisinho de canto de lábio.

“Mas era isso, sabem, a gente dormia assim, acordava de manhã, tirava o elástico e cada uma ia tocar a vida. Júlia ia dar aula, eu ia pro laboratório, normal.” virou-se para elas de novo. “Era tipo um ritual nosso. Como os que tínhamos quando crianças.”

“Se amarravam juntas quando crianças?” perguntou Valentina.

“Sim.” Carla respondeu. “Mas eu não me lembrava, acredita? Eu juro que não lembrava. Até que Júlia me mostrou as fotos.”

“Júlia lembrava.” afirmou Astrid. Carla não respondeu diretamente.

“Enfim… aos poucos começou a ficar mais… complicado.” começa a esfregar o tornozelo com mais força, aparentemente sem se dar conta, “Não sei dizer quando, foi tão gradual. A gente começou a… enrolar mais… pra tirar o elástico.” Valentina e Astrid assentiram, Carla parecia buscar encorajamento no fundo dos olhos delas. “Sabem? A gente ia batendo papo e… enrolando. Íamos escovar os dentes. Tomar banho. Quando me dei conta estávamos fazendo o café da manhã com os pés ainda amarrados.”

“Sem se atrapalharem?” pergunta Astrid.

“Então… não!” Carla parecia recapitular mil coisas na cabeça enquanto falava. “No começo sim, sempre tinha uma hora em que alguma de nós tropeçava e, ‘aff, chega dessa merda’ e tirávamos o elástico. Nem falávamos do assunto.” hesitou por um momento, “Mas é isso, sabe? Esse momento foi se tornando cada vez mais raro. Simplesmente não havia motivo pra tirar.”

“Exceto na hora de se vestirem.” Astrid se antecipa. Carla assente.

“E ir trabalhar.” completa. “Eventualmente chegou o dia em que a gente congelou, sentadas na cama, olhando pros nossos pés unidos, e nenhuma das duas conseguia se forçar a tirar o elástico.” Carla olhava para o tornozelo, a mente vagando. “Aquele elastiquinho poderia muito bem ser uma algema de titânio. Não conseguíamos tirar!” voltou-se para elas, “Minto. Não queríamos tirar.”

“Mas tiraram.” disse Valentina.

Carla riu, amargamente: “Não foi fácil. Acho que nunca cheguei tão atrasada no laboratório. Júlia também. E fiquei aérea o dia todo. Me sentia… desbalanceada.” As duas assentiram. “Quando nos reencontramos à noite, conversamos pela primeira vez, a sério, sobre o que estava acontecendo.”

“Separadas?” pergunta Astrid.

“Não.” Carla responde, encolhendo-se um pouco. “A primeira coisa que fizemos ao chegar no apartamento foi amarrar os tornozelos.” Voltou-se, então, para elas. “Aí conversamos.”

Astrid e Valentina se entreolham, cada uma sabendo exatamente o que a outra pensava, mas tentando, em silêncio, na sua intimidade única, achar uma forma de melhor se conectar às aflições da amiga. Chegam a um acordo de que o melhor seria Valentina perguntar:

“E como está a Júlia nisso tudo?”

“Ai, a Júlia…” Carla suspira, olhando pro teto, ainda soando exasperada, mas era visível um certo alívio na tensão em seu corpo. “A Júlia não é deste mundo. Ela…” divagou, fazendo um gesto de negação com a cabeça, “Ela deu entrada na burocracia para tirar a sua licença sabática.” Deu um tapa no joelho. “Naquele mesmo dia! Foi a primeira coisa que me contou a noite!”

Por um momento, Valentina se embasbacou. Não esperava por essa. Mas pensou rápido, e Astrid percebeu que seus lábios formavam um “é claro” silencioso antes dela retomar:

“E você surtou?”

“Não.” Carla riu, tapando o rosto com a mão e, depois, tirando os óculos para limpá-los na camiseta. “Não, eu não surtei. Eu surtei hoje.” Sorriu para elas, “Por isso estou aqui. Mas no dia não. E aí é que está, né?” recolocou os óculos, “Como eu posso não ter surtado?”

Valentina vacila, tentando avaliar se era uma pergunta retórica ou se requeria uma resposta.

“Eu fiquei olhando pra ela enquanto ela falava, sabe?” Carla retomou, enfim. “Nem lembro o que estava pensando, eu me sentia tão… aliviada. Passei tão mal aquele dia todo. Um mal estar quase… físico, sabe?” Fechou os olhos, lembrando. “A sensação do pé dela atado ao meu de novo…”

“Eu acho…” continuou, após uma pausa, “que também me sentia assim nos outros dias… mas não… tanto assim.” Seu olhar vagava entre Valentina e Astrid, mas Carla não as via, estava voltada para si mesma, um monte de fichas caindo, todas ao mesmo tempo. “Não depois de passar o dia inteiro achando que chegaria em casa e diria a ela que não faríamos mais… aquilo.”

“Mas você não disse, não é?” Astrid se arriscou a perguntar.

“Não.” ela murmura. “Não, não disse. Era só ela que falava… quase. Sobre como a licença duraria um ano, que a gente podia usar esse tempo pra se entender melhor, entender o que estava…” a voz foi baixando até quase sumir. Então ela respira fundo e retoma, mais firme: “Não soava absurdo.” Voltou-se pra elas. “Entende? Me peguei especulando possibilidades com ela. Tipo, pra valer. Formas de viabilizar aquilo, de tornar mais…”

“Sustentável?” pergunta Astrid.

O rosto de Carla se contorce num esgar, mas ela faz que sim com a cabeça.

“E… daria?” pergunta Valentina, com certa hesitação.

“O que?” Carla retruca. “Ah, sim… quer dizer, não! Não daria pra ser… Tipo, eu não preciso estar no laboratório todo dia, não necessariamente. Muita coisa dá pra fazer online, mas…” Voltou a tirar os óculos, num gesto impaciente. “Estão vendo? Eu continuo especulando! E é maluquice!” hesitou um instante, fazendo um rápido contato visual com as duas, “Não é como vocês, sabe? Por favor, não me entendam mal. É só que… vocês são artistas! Vocês podem se dar ao luxo de virar uma coisa só! Como a gente poderia fazer isso?”

Ela já começava a chorar de novo. O rosto inchado, a mão inconscientemente esfregando o tornozelo até a pele ficar vermelha.

“Miga, miga!” chamou Valentina, intuindo que talvez fosse hora de dar um passo atrás na conversa. “Calma, vamos com calma. Deixa eu tentar entender… Há quanto tempo vocês estão fazendo isso?”

Carla riu, amargamente. “Deusa! A sensação é que é desde sempre!”

Astrid acariciou os cabelos dela. Carla estremece ao toque, mas então relaxa, aceitando o afago.

“O que te angustia...” Astrid diz, com toda a doçura que lhe é característica, “não é se isso é loucura ou não. Se é viável ou não. O que te angustia é que é o que você quer, não é?”

Carla se solta, abandonando de vez todo o pudor que restava. Se permite a chorar como a muito não conseguia. Soluçando e se encolhendo ao encontro delas, deixando-se envolver por aquele abraço de polvo que, por mais que sua mente racional questionasse, não podia deixar de sentir como sendo a concha protetora que mais precisava.

“Oh, Deusa!” Carla gagueja, entre os rompantes de soluços. “Eu a deixei lá! Eu fugi! Júlia, me perdoa!”

“Calma, flor…” Valentina sussurra suavemente em seu ouvido.

“Ela sabe que você veio pra cá, não sabe?” Astrid sussurra também, no outro ouvido.

“Sabe…” Carla diz, com dificuldade, os espasmos aos poucos diminuindo. “Ela entendeu… Ela sempre entende tudo… antes de mim.”

Elas se desvencilham um pouquinho. Valentina pega os óculos embaçados dela e limpa na camisola. Carla consegue rir. Astrid lhe dá um beijo estralado na bochecha.

“Oh, Deusa…” ela murmura. “Eu amo tanto vocês…”

“E você é o amor da nossa vida!” Valentina declara, lhe dando um selinho. Astrid faz o mesmo, o rosto banhado de lágrimas.

“Por que está chorando?” Carla pergunta, passando os nós dos dedos nas faces dela.

“Porque estou tão aliviada.” ela gagueja, “Achei que tinha se virado contra a gente.”

“Ai, Tri, desculpa.” Carla diz, beijando-a novamente no canto dos lábios. “Vocês duas, por favor, perdão. Eu entrei em pânico. Me perdoem.”

“Fala disso, amore.” pede Valentina. Carla respira fundo, esfregando o rosto inchado com ambas as mãos.

“Pânico.” ela repete. “Simples assim! Eu vi vocês duas vindo na minha direção, e… é claro que eu sabia o que ia ver, mas… vocês vieram correndo. Correndo!” fez um gesto de ‘como assim?’. “De lado! Sei lá como! Não tenho ideia de como vocês fazem! Sem tropeçar, sem hesitar, grudadas pela barriga e correndo! Minha cabeça bugou!”

“Já nos viu tanto fazendo esse tipo de coisa…” começou Valentina, no fundo nem querendo pensar muito em ‘como’ faziam aquilo, já que ela mesma não saberia explicar.

“Sim, sim, claro,” interrompeu Carla, “eu sei que pareço um disco riscado repetindo o quanto isso deveria ser impossível, mas…” tomou fôlego tentando achar um modo de se expressar, “É o acúmulo, entendem? O acúmulo de esquisitices. De impossibilidades. E possibilidades! Eu olhei pra vocês naquele dia e, como num flash, toda a loucura que foi se acumulando desde o dia em que apareceram no consultório pela primeira vez… Minto! Desde que assisti a performance de vocês… Toda a loucura que eu achava já ter me acostumado… Tudo isso desabou em cima de mim de uma vez. Lá estavam vocês, grudadas de verdade, pelo meu adesivo. Vivas. Funcionais. Lindas!” deu de ombros, “Não era mais teoria. Não era mais… performance.” olhou para elas, “Era real.” estendeu a mão e tocou a camisola, sobre a área onde sabia que a conexão entre elas estava. “É real!”

Carla faz uma pausa, repentinamente absorta, quase como em transe. Astrid, num impulso, abre alguns botões da camisola, e Valentina, também num reflexo, conduz a mão de Carla até suas peles compartilhadas. As três fecham os olhos, suspirando. Um rubor passa pelos rostos de Val e Astrid ao deleite daquele toque. Carla estremece, por um momento, antes de continuar:

“Naquele momento,” murmura, “eu entendi que era possível. Que era realmente possível! Eu pensei em mim, pensei em Júlia… pensei em todas aquelas meninas algemadas juntas nos rolês.” Val e Astrid abrem os olhos, devagar e simultaneamente, prestando atenção nas palavras dela. “Uma espécie de quadro geral se formou na minha cabeça, vasto, imenso. E eu… surtei.”

Ela retirou a mão de dentro da camisola e também abriu os olhos, permanecendo um tempo fitando o nada, apenas se permitindo ao fluxo de memórias, de sensações e de reflexões, se deixando conduzir até seus sentimentos mais profundos e intraduzíveis. Aqueles que não se deixam expressar, apenas vivenciar.

“Eu surtei.” ela continuou, ainda aos murmúrios. “Nunca tinha sentido tanto medo em toda a minha vida.” voltou-se para elas, “Nunca me senti tão excitada em toda minha vida.” Em seus olhos, profundamente conectados aos olhos delas, faiscava a fagulha da realização. “Nunca me senti tão viva.”

Valentina abriu um sorriso e segurou a mão de Carla com força. “Assim como nós.” falou. Carla assentiu, sorrindo também.

“Carla…” começou Astrid, “Não sabemos nada de… quadro geral… tipo, tudo isso.” trocou um rápido olhar com Valentina. “A gente só queria se unir.” deu de ombros. “Só isso.”

“E seguimos nosso coração.” fechou Valentina. “Mas… se quer saber… tudo isso que você meio que está… insinuando?” perguntou, e Carla assentiu com um leve sorriso, inclinando a cabeça. “Eu só consigo achar… ” continuou Valentina, “bem… Uau!”

“Uau!” repetiu Astrid. As três riram.

“É…” diz Carla, “Uau…” e então, voltando a ficar séria: “E agora?”

“Agora,” declara Valentina, “você segue o seu, miga. Desencana de ‘quadro geral’, pra não ficar doida, e segue o seu coração.”

“Simples assim?” Carla pergunta, parecendo terrivelmente abatida, mas serena.

“Simples assim!” exclama Valentina, afetadamente. “O que, claro, não é nada simples.” e dá uma piscadinha.

Carla esfrega o tornozelo novamente, dessa vez mais ciente do que está fazendo. “Deusa!” diz, “O que a gente vai fazer?”

“Pra começo de conversa,” Valentina retoma, num tom mais sério e compassivo, “pára de antecipar as coisas! Júlia tem razão! Um ano de licença sabática? Lindo! Um ano pra vocês brincarem. O que vier depois é depois.”

“Val, eu não posso!” retruca Carla, “Tipo, como? Tem meu trabalho, minhas subordinadas…”

“Epa, epa!” ralhou Valentina, “Qual parte do ‘não antecipar’ você não entendeu?”

“Carla,” entrou Astrid, “você já está partindo do princípio de que vocês vão tão longe quanto a gente foi, e não precisa ser assim. Quer dizer, não necessariamente.”

“Não precisam ser tão loucas.” zoou Valentina, fazendo uma careta e envesgando os olhos.

“Pára!” queixa-se Carla, um pouco brincando, um pouco séria, “Não tira sarro, eu tô um caco por dentro.”

“Desculpa, amore.” diz Valentina. “Mas sim, a Tri tem razão. Você está indo muito longe, e muito rápido. Você não é como nós, nenhuma das duas é. A gente… precisava ir até o fim.” Astrid repousa a cabeça no ombro dela. “Desde o começo, a gente não podia parar, sequer pausar, nem que a gente quisesse… e não queríamos!” ela hesita por um momento, “Não sei o que teria acontecido se a gente tivesse parado… em qualquer momento.” sentiu um calafrio atravessando ambos os corpos. “Talvez tivesse desandando tudo…” murmura.

“E sem arrependimentos?” pergunta Carla, não que fosse de fato uma pergunta.

As duas juntam os rostos lado a lado e balançam as cabeças negativamente, em uníssono.

“Dúvidas? Sim.” Astrid explica, “Neuras? Muitas! Mas arrependimento? Não, longe disso.”

“Nós sempre fomos uma.” admite Valentina. “Reparou no nosso mural?” E contou a história das suas fotos de infância e das montagens improvisadas no mural, embora nenhuma das três se animasse a deixar aquele ninho para ir olhar mais de perto. Carla apenas acreditou, sem razões pra duvidar, olhando dali mesmo no sofá.

“O sangue de vocês é compatível.” ela comenta, mais para si mesma. “Tipos diferentes não deviam ser compatíveis… mas o de vocês apenas é.” Voltou-se para elas. “Sabiam disso? Sentiam?”

“Não sei…” disse Astrid. “Talvez. Nunca pensamos nisso.”

“Não, não de verdade.” admite Valentina. “Simplesmente tínhamos que ir até o fim.”

“Mesmo se morressem?” pergunta Carla.

“Não morreríamos.” Astrid se surpreende ao dizer. “Sabíamos que não.” declara com mais firmeza, compreendendo que era verdade. “É como a Val disse, sempre fomos uma. E nós já sabíamos disso.”

“Assim como você e Júlia sabem.” diz Valentina, com uma gravidade inesperada. Carla não reage, só fica olhando pra ela, pensando.

“Foi o que nos conectou quando a gente se conheceu, não é?” Carla pergunta, enfim.

“Suponho que sim,” especula Valentina. “Tínhamos isso em comum, você e eu. Éramos… duas metades.” sorri. “Só que você já tinha a sua outra metade, só tinha medo de admitir.”

“E eu a tenho… desde que me conheço por gente.” admite Carla.

“E eu ainda precisava achar a minha.” Valentina deu de ombros, voltando-se para Astrid.

“Eu sabia!” Astrid riu.

“Ai, Tri…” Carla ficou vermelha, “espero que não se sinta enciumada.”

“Como assim?” exclamou Astrid. “Ciúmes de mim mesma?” e deu um selinho estalado em Carla.

As três riem e se afundam ainda mais no ninho, aproveitando o calor e a segurança gerados pela sua amálgama. Os três rostos encostados juntos, dividindo ar e afeto.

“Preciso ir para casa.” sussurra Carla. “Eu a deixei sozinha. Eu fugi dela de novo.”

“Não fugiu.” sussurra Valentina.

“Não dessa vez.” sussurra Astrid.

“Ela sabe que você veio pra cá.” prossegue Valentina. “Sabe que precisa de tempo. E sabe que você vai voltar.”

“Ela te esperou por todo esse tempo, não é?” Astrid afirmou, mais do que perguntou.

“Sim.” compreende Carla, novamente às lágrimas, só que dessa vez de alívio. “Ela sempre foi mais esperta do que eu.”

“Vá com calma.” diz Valentina. “Sem pressa.”

“Como sempre nos mandou fazer.” complementou Astrid.

Carla riu: “E, por acaso, vocês faziam o que eu mandava?”

“Mas vocês vão.” diz Valentina, com doçura. “Já falei, vocês não são como nós. Nós somos fogo e ar, vocês são terra e água.” acariciou os cabelos dourados dela. “Vocês são fofas, fluidas, pacientes e singelas.”

“Tão singelas quanto um elastiquinho de cabelo.” complementa Tri, visivelmente encantada.

Carla ri com gosto, pela primeira vez naquela noite: “Oh, minha Deusa… como é difícil tirar aquele elastiquinho!”

“Continuem usando!” exclama Astrid, “”É tão fofo!”

“Ou, quando quiserem dar um passo a mais, temos um monte de brinquedinhos encostados pra doar.” Valentina diz, com uma piscadela.

“Deusa do céu!” Carla tapa a boca com a mão, vermelha como um tomate. “Talvez… uma daquelas tornozeleiras com aquele revestimento macio de espuma…?”

“Quer escolher uma?” propõe Valentina e as duas já vão levantando pra puxar a amiguinha para o quarto de brinquedos.

Seguem-se algumas horas lúdicas, com as três literalmente brincando de bondage com a coleção de relíquias arqueológicas da trajetória conjunta de Astrid e Valentina. Mais calma e mais centrada, Carla se deixa algemar, alternadamente, aos pulsos e tornozelos de suas amigas siamesas, testando a praticidade, o conforto e, acima de tudo, a sensação que cada objeto lhe provocava. Era só um jogo, claro. Para ganhar um tempo adicional antes de se reencontrar com Júlia e dar início a um longo processo de redescoberta que, agora, teriam de realizar juntas. Já passava das duas da manhã quando as três se despediram em frente ao carro, sob a luz do luar no jardim.

“Tem certeza que não prefere dormir aqui?” perguntava Astrid, segurando a mão de Carla com força. “É perigoso dirigir a noite. Pode sair de manhã cedinho se quiser.”

“Não, Tri, obrigada.” Carla dizia. “Não conseguiria esperar. Preciso vê-la. Hoje. Agora!” deu de ombros, com um sorriso, “Já ficamos horas demais separadas, não é?”

“Dê um beijo nela por nós.” pediu Valentina, segurando a outra mão.

“Um de cada!”, lembrou Astrid.

“De língua!” fechou Valentina.

“Ok! Ok!” Carla riu, “Darei bem mais do que isso.” deu uma piscadela e voltou a ficar séria, a sombra do medo atravessando rapidamente os seus olhos azuis, porém, dessa vez mais controlada pela serenidade da recente realização. “Muito obrigada por tudo.”

Valentina deu um passo na direção dela, segurando sua cabeça e aproximando-se até suas testas se encostarem.

“Vai dar tudo certo.” ela sussurra e Carla assente.

“Eu sei.”

As duas se sentam no gramado, vendo as luzinhas dos farois desaparecendo na distância. Os rostos colados, se acariciando, sentindo o leve pulsar das pélvis unidas, mais sereno do que nunca. Astrid, finalmente, quebra o silêncio.

“Não somos mais as únicas.”

“Pelo visto… nunca fomos.” diz Valentina. As imagens das dezenas de garotas algemadas pairando sobre suas cabeças.

“O que pensa sobre tudo isso?” Astrid pergunta. Valentina respira fundo.

“Sobre Carla e Júlia…” começa, “penso que as amo. E torço muito, muito mesmo, para que sejam tão fortes quanto nós, e segurem esse rojão até o fim.”

“Amém.” sussurra Astrid.

“Sobre o resto…” Valentina retoma, “eu não sei. Sinceramente… nunca imaginei uma coisa dessas. Não sei o que pensar.” faz uma pausa, refletindo, “Mas, independente de qualquer coisa… não tenho como não ver isso como algo… bom. Só isso… bom.”

“Sério que não dá uma alfinetadazinha no seu senso de… singularidade.” provoca Astrid.

“Ei!” ri Valentina, “Isso aí já fica implícito! Achei que queria impressões profundas.” elas riem e aproveitam para se deitar no gramado, sob as estrelas, se enlaçando e trançando as pernas. Assim que se ajeitam, Valentina continua: “E você? O que acha?”

“Acho,” murmura Astrid, olhando para a lua, “que você tem razão, nunca fomos as únicas. Na verdade, somos as primeiras.”

“Uau!” murmura Valentina, também olhando para a lua, tentando imaginar as implicações.

“E acho…” prossegue Astrid, “que ainda não acabou.” Virou-se para Valentina, que a olha de volta, “Pra nós, quero dizer.”

“Como assim?” pergunta Valentina. “Onde mais poderíamos chegar?”

“Não sei.” divaga Astrid. “Ainda temos que perguntar o que a outra pensa, né?”

Valentina não responde. Só fica ali, refletindo, ao lado de Astrid. Uma olhando nos olhos da outra, os narizes e as bocas se tocando, enquanto partilham o ar, a lua e a vida, até o dia amanhecer. 



10. E haverá mais coisas…

Nos tempos que viriam, não faltaria atividade para distrair as cabeças de Valentina e Astrid das implicações mais transcendentais das conversas daquela noite. Afinal, havia toda uma vida (ou, outrora, duas) para resgatar, agora que seu processo de união havia atingido um aparente desfecho. Descobriram-se inesperadamente inspiradas para a concepção de toda uma nova série de obras de um caráter mais abstrato e funcional, designs para a criação de um sistema de objetos, mobílias e utensílios cotidianos repensados para o uso de um corpo “duplo”, como o que agora partilhavam. Algo que já vinham improvisando, de forma mais ou menos diletante, por óbvias razões pessoais, mas que agora se revelava a elas em todo seu potencial de conceito.

“Vai se chamar ‘There are more Things’!” declara Valentina, melodramaticamente, fingindo não se divertir com as caras abismadas voltadas para elas durante toda a reunião da equipe de curadoria. (“Imagina se nos vissem nuas em casa?” ela sussurrou para Astrid assim que as duas entraram na sala. “E não é justamente isso que devem estar imaginando agora?”, respondeu ela, com um sorrisinho maroto nos lábios.)

“Conhecem, né?” Valentina prosseguiu. “É um conto do realismo fantástico argentino, sobre uma mansão cheia de móveis que não parecem ter sido desenhados para o corpo humano. Móveis que nos remetem, no decorrer da leitura, a um corpo de outro tipo, outra natureza. Algo que explode nossas mentes!”

“Daí pensamos em nos apropriar dele como o título para a nossa instalação.” complementa Astrid. “Aproveitando não apenas a insinuação de uma abertura para novas possibilidades, como também a deliciosa coincidência de que as criaturas do conto, que nunca chegamos a ver, mas para as quais os objetos parecem ter sido construídos, aparentam ter, assim como nós, uma natureza… dupla.”

“Algo que o caráter interativo proposto pela instalação convidará todas as nossas visitantes a experienciar.” conclui Valentina.

“E elas aprovaram?” perguntou Júlia, visivelmente empolgada, segurando o braço de Carla.

“Ainda não.” respondeu Astrid, se interrompendo para pegar a xícara de cappuccino que a garçonete acabara de trazer. “Obrigada, flor.”

“Mas vão.” Valentina continua, entre uma garfada de torta e outra. “Vão debater, implicar, levantar objeções ao orçamento, mas no fim vão aprovar.”

“Vão.” Astrid toma um gole e faz sinal de ‘abre aspas’ com os dedos, “É atual e polêmica o bastante para render publicidade.”

“Bota polêmica nisso!” Carla exclama e faz um gesto com a cabeça, indicando a rua, “Olha lá, mas disfarça.”

As duas espiam, por sobre os ombros, para além da vitrine do café, a tempo de ver duas garotas, unidas pelas costas, terminando de atravessar a avenida. A garota que vinha atrás parecia ligeiramente atrapalhada, deixando-se conduzir pela garota que andava na frente, visivelmente um palmo mais alta do que ela.

“Uia!” solta Astrid, “Ainda não tinha visto nada além de algemas e pulseirinhas conectadas!”

“Não, tem muitas assim por aí já.” explica Júlia. “É que vocês quase não saem. Eu mesma ando tentando convencer a Carla a comprar um desses espartilhos novos.”

“Pra gente sair por aí tropeçando igual aquelas duas?” ralhou Carla.

“Vocês não tropeçariam, sua tonta!” zoou Valentina, limpando o rosto com o guardanapo.

“Não? Não temos a mesma coordenação mágica de vocês, não!” queixa-se Carla.

“Vocês chegaram aqui de salto!” clamou Valentina, “Elegantérrimas, as duas! A gente nunca andou de tornozeleira usando salto.”

“Né?” exclamou Júlia, soprando seu cappuccino. “Eu mesma fico de cara com a gente, mas a Carla parece que adora botar defeito.”

“Carla só está sendo Carla.” declara Astrid. “Nossa cientista do coração!”

“Brigada, Tri! Só você me entende.” Carla faz uma mesura.

“Olha só essas duas?” Valentina diz, diretamente para Júlia.

“Pois é?”, ela responde. “Será que estão querendo trocar de parceira?”

“Não!” Carla e Astrid gritam ao mesmo tempo, cada uma agarrando o seu respectivo par. As quatro caem na gargalhada, chamando a atenção do café inteiro.

“Deusa do Céu!” diz Valentina, se recompondo. “É impressão minha ou estão encarando cada vez mais? Achei que já estavam acostumadas com todas essas duplas por aí.”

“É cada vez mais comum.” explica Carla, tomando um gole de café, “Mas o lance aqui é que eu acho que aquela garçonete começou a se ligar que vocês não estão usando espartilho.”

Valentina levanta a sobrancelha. “Hmm… saquei.”

“E nesse tipo de assento,” comenta Astrid, “a gente acaba tendo que ficar numas posições meio indecentes.

“Ah é?” debocha Valentina, passando o braço por trás das costas de Astrid e se esfregando sensualmente contra ela.

“Pára, pelo amor da Deusa!” ela cochicha, ruborizando toda, mas amando. Júlia cospe uma golada do cappuccino, aos risos.

“Parei, parei!” Valentina levanta os braços e se volta para a mesa. “Afe! Deu até calor! Deixa eu pensar em outra coisa… Carla! Você quer um espartilho de presente, é isso?”

“Mas parem de me pressionar, vocês duas!” Carla protesta, aos risos. “Deixa eu curtir mais um pouco as minhas tornozeleiras, caramba!”

“Ai, são uma delícia, não?” suspira Astrid. “Eu amava!”

“Falando sério,” retoma Carla, “eu sei que a gente tem uma sintonia, sim. Não sei se tão extrema quanto a de vocês duas!” voltou o olhar para Júlia, que sorria pra ela. “Mas sim, parece que rola algum tipo de… como direi? Compatibilidade… que não acontece com todo mundo… nesse… fenômeno.”

Astrid se inclina sobre a mesa, intrigada: “Tipo, quer dizer que aquelas moças lá na avenida não tinham essa compatibilidade?”

“Hmm…” Carla termina de engolir um naco do pão de queijo, “Não sei, só tô especulando. Mas veja…” fez um gesto, “Olha pra vocês, parecem gêmeas, ao menos de corpo. E Júlia e eu temos proporções muito similares também.”

“Sempre pudemos partilhar nossas roupas.” complementou Júlia. “Desde meninas. Mesmo número em quase tudo.”

“Como assim, ‘quase’?” corrigiu Carla. “Enfim, o que eu quero dizer é que isso tem que ter alguma influência. Digo, pra balancear os centros de equilíbrio, coordenação motora e tal.”

“Aquelas duas não tinham a mesma altura.” constatou Valentina. Carla assentiu.

“Não parece justo.” confabulou Astrid. “E se elas se amam e desejam isso, independente da diferença dos corpos?”

“Será que é tão fácil assim saber o que se deseja? Ou a quem se ama?” especula Carla, causando uma breve pausa contemplativa na conversa.

“A garota que ia na frente…” retoma Júlia, por fim, “parecia a dominante. A outra apenas se submetia. É isso que você está pensando?”

“Sério, não sei.” responde Carla. “Só imagino que conforme isso vai se tornando cada vez mais socialmente aceito, ou ao menos uma parte da paisagem, me parece esperado que nem todo mundo vai fazer isso por desejo genuíno, profundo, mas sim por capricho. Tem gente que só quer estar na moda.”

“Faz sentido.” comentou Valentina. “Tem poser pra tudo.”

“É estranho pensar assim,” diz Astrid, “considerando o quanto isso sempre foi tão vital pra gente. Mas aí eu tenho que voltar a isso: só dá pra se unir com alguém que tenha um corpo compatível ao seu?”

“Gente, eu não sei.” insiste Carla, “Só estou pensando alto, especulando sobre o que vejo.”

“Poderia ser o contrário.” comenta Júlia.

“Como assim?” pergunta Astrid.

“Talvez as pessoas que nasceram para se unir acabem por desenvolver corpos similares e compatíveis.”

“Mas aí você já está falando de destino.” protesta Carla, terminando o cappuccino.

“Estou?” sorri Júlia.

“Seria tão absurdo?” pergunta Valentina. “Olha pra nós. Olha pra vocês.”

“Permitam-me preservar o que ainda me resta do bom e velho ceticismo”, Carla responde, pomposamente. “Só sei… que nada sei!”

“Nem que me ama?” queixa-se Júlia, fazendo um beicinho.

“Isso…” Carla se inclina sobre ela e a beija, “eu não preciso de ciência pra saber.”

Astrid apoia o rosto na mão e suspira, embevecida. Valentina se vira e dá uma lambidinha no canto dos lábios dela, que toca a ponta da língua dela com a sua, em resposta.

“E agora…” Carla diz, olhando bem no fundo dos olhos de Júlia, “Preciso ir.” Júlia faz uma expressão desolada.

“Preciso? Singular?” espanta-se Astrid.

“Não posso mais evitar o laboratório essa semana.” explica Carla. “E pra Júlia ir comigo ela teria que ter passado por todo um procedimento biológico e burocrático.”

Enquanto fala, ela encontra a chave na bolsa e se abaixa para destravar a tornozeleira. Val e Astrid sentem uma comichão desagradável nas pélvis ao ouvir o clique. Júlia tenta sorrir, com seus olhos tristes.

Carla encosta a testa na testa dela e as duas fecham os olhos. Ela murmura um “desculpa” quase sem emitir som, e passa a tornozeleira para que Júlia a guarde. Depois se levanta, jogando a alça da bolsa por sobre o ombro, e se volta para Astrid e Valentina:

“Estão vendo porque é melhor evitar o espartilho?” Ela dá de ombros, sorrindo, e Valentina e Astrid se levantam para lhe dar um abraço.

“Ei!” ela exclama e diz para Júlia: “Por que não leva elas pra passar a tarde no parque? Aposto que nem lembram onde é!”

“Ai, sim! Por favor!” pede Júlia, “Não me deixem só!”

“Acho o máximo!” exclama Valentina. “Delícia!” se empolga Astrid.

“Então fechou.” diz Carla, “Até breve, meninas!” e sai, visivelmente se equilibrando no salto com uma dificuldade mais acentuada do que quando chegou.

O parque parecia maior do que Astrid e Valentina lembravam, o que provavelmente era um sinal do quanto haviam se tornado, de fato, um par de ermitãs excêntricas. Sua presença chamava atenção, mas não tanto quanto esperariam, diante da impressionante quantidade de duplas espalhadas por toda a extensão do amplo gramado. Júlia estendeu uma toalha xadrez, vermelha e amarela, e as três relaxaram, preguiçosamente, sob o sol, especulando sobre a “compatibilidade” dos parzinhos que estavam ao alcance de sua visão.

Havia meninas unidas pelos pulsos, pelos pés, pelas costas, pelos ventres. Havia algemas, cordas, pulseirinhas fundidas e até shibari e correntes. Garotas negras, brancas, asiáticas, magricelas e gordinhas, altas e baixas, tronchudas e delicadas. Parecia que o parque havia se tornado uma espécie de point para encontros, trocas e experimentações.

“Infinita variedade, infinitas combinações…” sussurrou Astrid.

“É incrível, não é?” comenta Júlia, olhando ao redor com seus óculos escuros. “Até pouco tempo atrás só se via isso em rolês fetichistas.”

“Nunca teria sonhado.” admira-se Valentina, mais emocionada até do que queria admitir.

“É por isso que a Carla topa sair em público agora.” admite Júlia. “Ela se faz de durona, mas no fundo morre de medo.”

“Mas você não.” comenta Astrid.

“Nunca liguei para o que o mundo pensa de mim.” ela confirma. “Mas não deixa de ser um alívio ver as coisas mudando.”

“E como você está?” Astrid pergunta.

“Quer dizer, por a gente ainda ter que se separar de vez em quando?” ela dá de ombros. “Não tem outro jeito. Tomamos rumos diferentes demais na vida.” Virou-se para elas. “Eu mesma não sei o que vou fazer quando a licença acabar. Levá-la para dar aula comigo?”

“Eu assistiria essa aula!” brinca Valentina.

“Enfim,” Júlia mexe no tornozelo enquanto fala, “já fico feliz por ela estar em paz com o que deseja agora. Em paz comigo. Eu sei que, no fundo, ela quer muito mais que um espartilho. Ela quer se unir a mim do mesmo jeito que vocês fizeram. Só não admitiu ainda.”

“Seria tão lindo.” Astrid sorri, radiante.

“Imagina essas peles se fundindo…” Valentina parecia visualizar com o olho da mente. “Que tesão, vocês seriam como Deusas!” exclamou.

Júlia gargalha. “Obrigada!” Ela suspira e, então, continua. “Mas é isso… tudo indica que não vai acontecer.”

“Você não soa tão angustiada.” especula Astrid.

“Não, né?” Júlia ri.

“Não acredita mesmo nisso.” Valentina dá uma piscadela.

“Eu acredito…” Júlia desabafa, “que o mundo está, de fato, mudando. E rápido.” Ela olha ao redor, através da extensão do parque. “Parece impossível hoje. Mas, quem sabe, daqui a alguns anos?” vira-se de volta pra elas, “Ou meses?”

“Talvez o mundo é que se adapte a pessoas como nós.” Astrid conjectura, observando duas duplinhas, ao longe, jogando peteca. Uma dupla unida pelos pulsos, a outra pelos quadris.

“Justamente.” Júlia confirma, observando as duas com carinho e admiração. Tão lindas ali deitadas, uma em frente à outra, apoiadas por sobre os cotovelos, as pernas entrelaçadas e as faixas de pele unidas aparecendo provocantemente por entre as camisetas e os shorts.

“Vocês parar pra pensar…” Júlia começa, “que tudo isso começou com vocês duas?”

“Deusa!” Valentina exclamou, “Não sei se eu quero pensar.”

“A gente pensa sim.” Astrid diz para Valentina, e depois se volta para o gramado, “Cada vez mais.”

Júlia ri: “Carla também não gosta de falar do assunto. E ela acha que eu não sei o que está rolando lá no laboratório. Como se fosse possível!”, sorri para Astrid. “A natureza inteira do trabalho dela com os adesivos mudou. Ampliou, na real.”

“Tem gente procurando pra…?” se espantou Valentina.

“Vocês são lendárias.” Júlia tira os óculos e as encara, serenamente. “Especialmente entre a garotada mais jovem, as adolescentes. Vocês abriram as mentes delas para algo novo e excitante.”

“Calma aí, não tô vendo ninguém aqui vindo pedir autógrafo.” diz Valentina.

“Eu disse lendárias.” explica Júlia. “Não famosas.”

As duas levantam e se ajeitam sentadas, para se engajar melhor na conversa. Júlia aponta com os óculos para as garotas do parque.

“Duvido que alguém ali saiba quem vocês são.” explica. “Cada uma delas se inspirou numa amiga, numa prima, em alguém que conheceu na balada. Mas se alguém se der ao trabalho de rastrear, vai descobrir que a coisa toda brota das vernissages, dos rolês de fetiche…” vira-se na direção delas: “até chegar em vocês.”

Val e Astrid ficam em silêncio. Ouvindo e pensando. Vendo todas aquelas figuras. Haveria mesmo mais duplas ali do que pessoas sozinhas?

“Agora,” prossegue Júlia, “claro que muitas delas ouviram falar da história das duas artistas plásticas que foram muito além das algemas e espartilhos e se tornaram, literalmente, irmãs siamesas. Mas como vão saber que são vocês?” ela aponta de novo: “Olha lá a quantidade de barriguinhas amarradas.” Ela faz uma pausa. “E outra… nem todas acreditam que vocês existem.”

“Lendas.” comenta Astrid e Júlia assente.

“Ao menos até lançarmos a nova instalação” diz Valentina, “aí voltaremos pra mídia…” ela emudece, a ficha caindo.

“Provavelmente será o estopim de uma nova fase.” especula Júlia. “Que talvez se conecte à popularização dos novos tratamentos com base em anastomose que, por mais que tenham sido desenvolvidos, tecnicamente, para outros fins, irão permitir que as pessoas escolham se querem continuar vivendo como indivíduos isolados ou… como vocês.

“Uau!” solta Valentina, de queixo caído. “Uau!” solta Astrid, mais embasbacada ainda.

“Pois é… Uau!” Júlia ri, quebrando o clima, por um momento. “Mas é sempre assim, sabe? Uma ideia nova surge, muitas vezes nos rolês mais marginais e obscuros e, se fizer sentido o bastante, começa a se espalhar até que ninguém mais saiba dizer onde começou.”

“E essa ideia está fazendo um puta de um sentido.” Valentina murmura, fazendo as duas se voltarem rapidamente para ela. “Quer dizer, é o que parece, não é?”

Júlia assente com a cabeça: “É o que parece.” recoloca os óculos. “Só posso dizer que pra mim faz. E pra Carla.”

“Mas tem isso também, Júlia,” Valentina fala, “Vocês sempre tiveram isso em vocês. Eu sei disso melhor do que qualquer pessoa. Não veio da gente.”

“Verdade.” concorda Júlia. “Mas será que iríamos admitir, e fazer isso… sem vocês?”

“Como todas aquelas meninas ali.” confabula Astrid. “Talvez já tivessem isso nelas também. Essa… incompletude.” cerrou os olhos, lacrimejando ao lembrar como era a sensação.

”E só poderiam reconhecer isso em si mesmas num mundo que já estivesse pronto para entender.” concorda Julia. “E aceitar isso.”

“Deusa…” Valentina sussurra, quase como numa oração.

“Você não é uma simples historiadora, é, Júlia?” Astrid solta a queima roupa, depois de uma pausa. Júlia dá uma gargalhada.

“E desde quando a História tem alguma coisa de simples?”

“Quero dizer, o que você estuda?”

“Ok. Minha área de pesquisa é em mitologia comparada.” Júlia explica, “Mas passei toda a minha carreira me aprofundando em esquisitices.”

“Tipo?” pergunta Valentina.

“Religião, ocultismo. Magia…” ela sorri. “Enfim, eu sou uma autoridade em esquisitice, que posso dizer?”

“Eu devia ter imaginado!” riu Valentina.

“Perdi a credibilidade?” pergunta Júlia, com cara de dó.

“Ao contrário, ganhou!” exclamou Valentina. “Meu… isso explica tanta coisa! Você e Carla! Que errado! E que perfeito! Nasceram uma pra outra!”

“Também acho.” ela agradece, emocionada.

“Você tem estudado a gente, né?” pergunta Astrid. “Essa conversa toda não veio do nada.”

“Culpada!” ela levanta os braços, em sinal de rendição. “Eu admito, vocês me interessam muito. Desde que eu soube, pela Carla, o que vocês estavam fazendo.” suspirou, colocando a mão no coração, “E não só por ela ter voltado pra minha vida graças a vocês.” lacrimejou, a voz embargada, por um momento. “Desculpa!” tirou os óculos de novo. “Obrigada, gente, por existirem.”

“Minha linda!” falou Astrid, as duas envolvendo Júlia nos braços com seu abraço especial de polvo. Júlia se desmancha em lágrimas, radiante de felicidade.

“Tá ligada que agora lascou-se, né?” Valentina assopra em seu ouvido.

“Você acaba de entrar oficialmente no nosso círculo de intimidade.” complementa Astrid, no outro ouvido, dando um beijinho em sua orelha.

“E quando isso acontece,” Valentina finaliza, passando uma perna ao redor da cintura dela, enquanto Astrid a envolve com outra perna, “a gente gruda!”

“Por favor!” pede Júlia, “Grudem, que hoje eu tô carente!” e as três gargalham, balançando abraçadas.

“Mas agora me conta, Ju.” pede Valentina, brincando com o nariz nas tranças dela. “O que vai escrever na sua tese sobre nós?”

“Tese? Não, pelo amor da Deusa!” ela ri, “Desculpa, Val, não que não mereçam, mas teses eu já fiz o bastante nessa vida.”

“Ai, desculpa aí!” Valentina diz, fazendo um muxoxo. Astrid mal se aguenta de rir.

“Sobre vocês,” Júlia prossegue, virando o rosto para esfregar o nariz no nariz de Valentina, “estou fazendo algo muito mais relevante do que uma tese: uma pesquisa informal! Pra mim mesma!”

“Já me sinto mais importante.” brinca Astrid, mas legitimamente emocionada pela atenção.

“Pra nós todas, na real.” Júlia retoma, num tom mais sério, quase melancólico. “Pra mim, pra Carla. Pra vocês duas. Pra elas.” ela indica as duplinhas no parque, com a cabeça.

“Sério, Ju, alguma descoberta importante?” pergunta Valentina.

“Não sei… talvez.” Júlia parece refletir. “Talvez eu não devesse ter entrado nisso com vocês agora. Tudo o que eu tenho são umas associações bizarras. Coincidências. Paralelos. Mas enfim, não resisti! Falei!”

“Que tipo de coincidências?” Valentina pergunta.

“Sério?” Astrid retruca, olhando para ela com cara de deboche.

“Como assim?” Valentina arregala os olhos.

“Val, nossa vida toda é uma rede de coincidências!” ela graceja. “Você sabe disso!”

“Não sei não… quer dizer…” Valentina balbucia.

“Que tal o fato da sua melhor amiga, de muito antes até da gente se conhecer, calhar de ser justamente uma cientista que trabalha com adesivos cirúrgicos?” demonstra Astrid.

“E que, por acaso”, acrescenta Júlia, “partilha da sua… compulsão pela união física, mesmo que de uma forma reprimida e quase inconsciente.”

“Ou ao menos sente esse desejo aflorando de uma forma mais aguda do que a maioria das pessoas.” especula Astrid, pensando no fenômeno das duplas. Júlia concorda.

“E, também por acaso,” Valentina arrisca, lentamente, “calha de ter uma irmã adotiva que é historiadora… e bruxa?”

“Não sou bruxa!” protesta Júlia, “Sou pesquisadora.”

“E é também a outra metade dela.” crava Valentina. “E você sempre soube disso, não é?

Júlia suspira, puxando Valentina para si e recostando a cabeça no ombro de Astrid.

“Saber talvez seja demais para afirmar.” reflete, enfim. “Eu sentia. Eu queria. Carla sentia. Mas não queria. Ou achava que não devia querer.”

“Até conhecer a Val?” questiona Astrid.

“Até a Val conhecer você.” Júlia afirma. “É uma rede, percebem? Coincidências? Influência mútua? Folie à deux? Ou à quatre?” ela ri. “O fato é que, se uma só dessas pecinhas não estivesse no seu devido lugar… nada aconteceria. Vocês jamais conseguiriam se tornar o que se tornaram.” Ela faz uma pausa. “E o mundo não estaria mudando agora.”

“E o que você acha que nos tornamos?” pergunta Valentina.

“Como assim?” questiona Júlia.

“Quando diz ‘se tornaram’, não parece estar se referindo ao óbvio.” ela explica. “Soa como algo mais. Algo específico.”

Ela se espreguiça como uma gata entre as duas.

“Eu suspeito.” diz, “Mas é doideira demais pra jogar na roda agora. Deixa eu cavoucar mais um pouco. Juntar mais umas peças.” ela olha de uma pra outra. “Ter mais certeza do que estou matutando. Aí vocês serão as primeiras a saber.”

“É bom mesmo!” alerta Valentina.

“Por favorzinho.” implora Astrid.

Júlia dá um selinho estalado em cada uma.

“E agora”, declara, “vamos pra casa, que a Carla já deve estar voltando, e eu não aguento mais ficar separada dela. Vambora! Hoje vocês é que vão conhecer o meu fondue!”




11. Saindo do Armário

Mal retornaram ao mundo, e Valentina e Astrid já sabiam que não iriam querer ficar nele por muito tempo. Todo aquele fervo midiático, o glamour do universo das artes, o assédio, os rolês, a atenção, tudo o que outrora se revelava uma fonte de prazer e estímulo, agora lhes parecia apenas tedioso. E por que não? Já haviam encontrado o que buscavam. O efeito colateral da plenitude não poderia deixar de ser uma espécie de distanciamento, e estavam em paz com isso. Satisfeitas em ter como círculo social quase que exclusivamente Carla e Júlia. Mas sentiam que ainda havia um propósito a cumprir. Uma espécie de arremate que deviam àquele mundo em franca transformação, antes de deixá-lo para trás mais uma vez.

A instalação superara todas as expectativas. Como Júlia havia previsto, naquele já distante idílio ao Sol no parque. Tudo foi muito além de uma mera exposição artística ou a retomada de suas carreiras. Multidões se acotovelavam atrás de convites e interagiam com os objetos com um fervor quase religioso, obrigando as equipes de curadoria a repensarem a estrutura menos de uma semana após a inauguração. O caráter, perceberam, havia mudado. Não era mais um jogo lúdico de interatividade abstrata, mas uma experimentação para novas formas de existir e de estar no mundo. Duplas unidas nas mais variadas configurações convergiam e se apropriavam da instalação, ressignificando-a de acordo com suas próprias urgências e necessidades de auto-expressão. Era evidente, até pras céticas mais aguerridas, que o que parecia ser um mero modismo entre jovens adultas metidas a excêntricas, se transfigurava num movimento social legítimo, que demandava atenção, estudo e porta-vozes.

A essa altura, já se tornara de conhecimento público que as prestigiadas artistas plásticas Astrid Velvet e Valentina Vexley haviam se unido de uma forma mais extrema e permanente do que qualquer algema, corrente ou espartilho. Jornalistas e colunistas especulavam sobre o que haveria debaixo daqueles estilosos figurinos que elas mesmas desenharam para suas aparições públicas, e até mesmo as resenhistas mais virulentas acabavam por confessar certo fascínio pela forma hipnótica com que elas se moviam pelo salão, como uma quimera de oito membros e duas cabeças que sequer parecia caminhar, mas sim flutuar pelo recinto, cumprimentando fãs, dando conselhos sobre equilíbrio e convivência, métodos de sustentar a união física, e todas as demais perguntas que, por hora, preferiam refrear às jornalistas.

Com cerca de quinze dias da abertura da instalação, uma coletiva foi anunciada, em comum acordo não apenas com a curadoria, mas particularmente com Carla e Júlia que, com seus quadris elegantemente grudados por um protótipo ainda solúvel dos novos adesivos recém desenvolvidos, passara uma infinidade de noites na casa de campo das artistas debatendo os prováveis cenários, as possíveis consequências e os esperados desdobramentos de um exposé daquela magnitude. Por fim, nem chega a ser importante registrar quem, afinal, teria dito a frase que selou toda a questão:

“Gente… o mundo já mudou. Tudo o que nos resta agora é confirmar.”

E foi com esse espírito que as duas surgiram em cena, diante das câmeras, na reabertura da instalação, com um vestido conjunto cuidadosamente decotado para revelar não apenas as tatuagens, mas boa parte das laterais de seus ventres, revelando, sem a menor dúvida, que não havia, de fato, espartilho ou mesmo faixa de cola visível entre as duas. Só a visão já fizera a plateia suspender o coro num silêncio pasmado. As duplas se agarrando umas às outras numa antecipação maravilhada, enquanto as isoladas, ainda em discreta maioria, se viam tomadas por um sentimento intraduzível, um misto agridoce de excitação e incômodo.

Aproveitando a deixa, elas deram um passo à frente, a sua maneira própria e plural, e com um sorriso doce ao microfone, se dirigiram à todas elas:

“Meu nome é Valentina Vexley.”

“Meu nome é Astrid Velvet.”

“Essa é a nossa obra.” elas abrem os quatro braços, dois abarcando o salão, dois indicando seus corpos.

“E como toda obra artística, a sua principal razão de ser era tentar descobrir por que, afinal, nós precisávamos tanto criá-la.”

“Por toda a nossa vida sabíamos que não nos bastávamos. Sentíamos isso no âmago mais profundo do nosso ser.”

“E tentávamos expressar isso, da melhor forma que podíamos, com tinta, argila ou metal…”

“Ou modelos.” acrescentou Valentina, dando uma piscadela ao reconhecer as suas antigas colaboradoras de performance em meio a multidão, exibindo a singela correntinha prateada que as ligava pelos pulsos.

Astrid sorriu e prosseguiu: “Até que nada mais seria suficiente, a não ser a experimentação em nossos próprios corpos. Como tantas outras artistas do passado, quando se depararam com essa nebulosa fronteira entre a arte e a vida.”

“E pela graça da Deusa, do Universo, ou do que quer que prefiram acreditar, foi aí que nos descobrimos uma à outra.”

“E temos estado juntas desde então. Verdadeiramente juntas. A cada instante, cada fôlego, nos explorando, nos entendendo. Tentando descobrir se há limite. Se a ânsia que nos une é algum tipo de loucura ou de ilusão.”

“Até entender que isso não importa. Não queremos racionalizar o que nos move. Somos o que somos. Sentimos o que sentimos. E o que sentimos é completude. Plenitude. Algo que nunca tivemos antes. Algo sem o qual não podemos, e não queremos, mais viver.”

“Assim, demos o passo, como muitas de vocês têm especulado, para a união permanente. Somos uma.” elas se movem de modo a exibir as laterais de seus ventres, puxando a pele com as mãos para demonstrar que não havia mesmo um limite visível entre uma e outra. Um murmúrio chocado e extasiado percorreu o salão.

“Somos uma.” Valentina repetiu. “Essa é a nossa obra. Isso é o que sempre fomos, mesmo antes de nos conhecermos.”

“Isso é o que sempre nos moveu como artistas. Expressar isso. Viver isso. Nos tornar isso.”

“O que só se tornou possível, graças à nossa amiga, nossa bem amada, Dra. Carla Cruise, que sabemos que muitas de vocês conhecem, e até procuraram, mas que só agora poderá recepcioná-las de verdade e lhes dar toda a atenção que merecem.”

A multidão rompe em aplausos quando as duas indicam Carla e Júlia, um tanto atrás delas, meio escondidinhas num canto discreto do salão. Carla debulha em lágrimas, mal sabendo como se portar. Júlia a abraça e aperta com força, até ambas quase perderem o fôlego.

“Sim, meus amores.” retoma Valentina, conforme o clamor vai diminuindo. “O tratamento de anastomose existe. Não é uma lenda urbana. A união permanente é uma possibilidade!”

O salão explode novamente. Aquelas que têm uma parceira, a abraçam, emocionadas. As que não têm, mas desejam, gritam e levam as mãos ao rosto, mal acreditando no que estão ouvindo. E aquelas que não compartilham daquele impulso, ou sequer o compreendem, já começam a se dividir, intimamente, entre futuros grupos de antagonistas e simpatizantes.

“Mas isso é com vocês.” continua Astrid, com suavidade, alguns instantes depois do silêncio ansioso voltar a imperar. “Essa é uma jornada íntima e pessoal que não nos diz respeito. Não diz respeito a ninguém, assim como a nossa jornada só dizia respeito a nós duas.”

“Não nos entendam mal. Nossos corações batem mais forte por descobrir que, afinal, não estamos sós. Torna tudo mais fácil. E mais bonito. Mas nós teríamos ido até o fim mesmo que o mundo inteiro nos achasse loucas. Ou aberrantes.”

“Era a nossa verdade. É a nossa verdade. Não sabemos, sinceramente, se é a verdade de vocês. Torcemos que sim. Fazemos votos para que sim. Para nós, não há prazer maior do que estarmos unidas, e amaríamos, de todo coração, se pudéssemos partilhar essa epifania com todas vocês.”

“Mas seria irresponsabilidade da nossa parte. A Dra. Carla e sua equipe já trabalham em protocolos e procedimentos para avaliar, caso a caso, as duplas que acreditam desejar a união permanente. E, decerto, haverá desdobramentos legais, sociais e políticos que, outra vez, com todo o respeito, não nos concernem.”

“Respondemos apenas por nós. Como artistas. Por meio de nossa obra, que agora está no mundo e, portanto, pertence mais a vocês do que a nós.”

“Se apropriem dela, como seus corações demandarem.”

“E nos considerem gratas… por vocês existirem.”

Elas se afastam do microfone, com as mãos entrelaçadas sobre os corações, agradecendo sinceramente pela ovação. A curadoria assume a palavra para declarar que a instalação “There are more things”, da artista plástica Uma, estava oficialmente reaberta. E, depois do que consideraram um tempo razoável para responder às perguntas das jornalistas e dar um pouco de atenção às fãs ansiosas para interagir com os móveis e objetos imaginados para um novo mundo de corpos unidos, Valentina e Astrid escapuliram pelos fundos, com toda a finesse adquirida pelo seu histórico de exposições e vernissages, e, arrastando Júlia e Carla consigo, terminaram a noite num rodízio de sushi, no restaurante japonês mais discreto que conseguiram encontrar.



12. Repercussões e Sistematizações

Ainda que não o colocassem diretamente em palavras, nem mesmo entre elas, Valentina e Astrid meio que consideraram suas responsabilidades para com o mundo em grande parte saldadas depois do evento daquela noite. Aliviadas pela localização de sua casa não ser de conhecimento público, se recolheram ao estilo de vida que haviam aprendido a amar desde que deram início à sua jornada pela união. Continuaram a produzir, talvez até mais do que antes, porém de forma mais caseira, desenvolvendo projetos, designs, plantas e croquis para a crescente demanda por novos modelos de arquitetura, vestuário e mesmo geografia, repensados para uma sociedade na qual os corpos unidos já não eram anomalias, e, cada vez mais se constituíam como um novo modelo para o convívio social.

Tentavam se manter atentas às possíveis repercussões políticas e, acima de tudo, legais. O que mais temiam era que Carla, e consequentemente Júlia, acabassem sendo prejudicadas de alguma forma, e se mantinham de prontidão para o caso de serem convocadas a prestar algum tipo de depoimento. Mas foram relaxando conforme ficava claro que até mesmo entre as juízas e promotoras havia quem se assumisse como “pessoas unidas”, fazendo com que a maior parte dos processos acabasse, eventualmente, enroscada em algum meandro burocrático. Com o tempo, até as polemistas mais virulentas começaram a se dar conta de que estavam perdendo as seguidoras e, quando duas das candidatas a vereadoras daquele ano apareceram em um comício acorrentadas pelo pescoço, reivindicando uma candidatura conjunta, ninguém mais ousaria duvidar de que o fenômeno tinha vindo pra ficar.

Enquanto isso, Astrid e Valentina concluíram as reformas do seu ninho (particularmente nos banheiros que precisavam há tempos de uma ampla reformulação) e adotaram uma gatinha (ou, mais precisamente, foram adotadas por ela), que logo se seguiu de outra e, (por que não?), de mais outra, que apareceu para roubar comida na calada da noite e olhou pra elas com aqueles olhos que nem mesmo uma rainha ousaria contrariar.

“Sério, não sei como nunca pensamos nisso antes.” confessa Valentina, enquanto jazem aconchegadas sobre um puff, com Katrina (a gata número 2) aninhada literalmente no meio das duas, dormindo bela e formosa sobre a junção de seus ventres. “É a nossa cara! Olha pra nós. A gente nasceu pra ser as velhas loucas das gatas.”

“As velhas siamesas loucas das gatas.” corrigiu Astrid, com doçura, mas Valentina sentiu, no próprio ventre, que o estado de espírito dela havia mudado.

“O que foi?” perguntou, passando a mão pelos cabelos dela.

“Não é nada.” Astrid suspirou. “Bobagem. Pensamentos randômicos.”

Valentina a fitou profundamente: “Foi a palavra ‘velha’, não foi?”

Astrid desviou o olhar para Katrina, receando dar corda no assunto.

“É bobeira da minha parte,” admitiu enfim, “me veio à cabeça aquele filme horroroso…”

“Chained for Live?” completou Valentina, evocando o infame último filme das gêmeas Daisy e Violet Hilton.

“Enfim, bobagem.” Astrid tenta sorrir para ela. “Deixa pra lá.”

“Também me pega um pouco.” confessa Valentina. “Pensar em envelhecer.”

“Nem é bem isso.” Astrid se encoraja a pôr para fora. “Me faz pensar na… morte.”

“Tem medo de morrermos?”

“Tenho medo de você morrer” Astrid a encara. “Tenho medo de eu morrer. Tenho medo da separação.”

“Se você for eu vou.” Valentina afirma, convicta. “A morte não pode nos separar.” completa, menos convicta.

“Não tem como a gente saber, não é?” Astrid tenta fazer soar como um gracejo, mas a voz embarga contra a sua vontade.

“Que se dane!” Valentina segura o rosto dela com ambas as mãos. “Nós vamos juntas!”

Astrid assente, com os olhos úmidos, e coloca as mãos sobre as mãos dela.

“Esquece isso.” ela diz. “Estou feliz agora.” E começa a flexionar suas pélvis de uma forma que sabe que vai deixar a ambas loucas. “E quero curtir a felicidade ao máximo!”

Katrina escapole assim que começa a se sentir esmagada, e Valentina, ofegante, cola os lábios aos de Astrid, deixando, por hora, quaisquer pensamentos mórbidos para trás.

Foi um período em que tiveram poucas chances de receber ou fazer visitas a Carla e Júlia, por demais atoladas pelas demandas legais referentes à chuva de pedidos de tratamento para união por anastomose. Ou, mais precisamente, Carla estava. Júlia, claro, ainda gozava da flexibilidade dos seus últimos meses de licença sabática, mas uma vez que o laboratório (e, na real, boa parte dos ambientes de trabalho) já estava razoavelmente re-adaptado às novas lógicas de escalação que levavam em conta a presença constante das companheiras de suas funcionárias, foi ficando cada vez mais difícil que se vissem obrigadas a passar pelo desconforto cotidiano da separação. Ao contrário, Júlia se tornou uma presença quase indispensável no contexto das pesquisas, fornecendo insights humanísticos que as equipes outrora compostas apenas por cientistas de formação em ciências duras dificilmente teriam condições de ter.

“Se me passasse pela cabeça que seria o mundo que iria se re-adaptar a pessoas como nós e não o contrário, eu nunca teria surtado!” Carla lhes escreveu, numa mensagem. “Não vejo a hora de começar a frequentar as aulas da Júlia na universidade, quando o sabático dela acabar! Imagine só: meia semana, toda semana, longe do laboratório, mergulhada num outro universo, respirando outros ares, outras perspectivas, e voltando ao trabalho renovada e arejada! Como nunca pensamos nisso antes?! Querem saber? Eu deveria instituir a regra de que só pessoas com formação diferente possam fazer anastomose. #TôZoando”

Claro que riram muito ao ler isso. Mas sabiam que a brincadeira tinha um fundo de verdade. A harmonia que havia entre as duas continuava a ser uma coisa rara, quase única, por mais que o número de auto-declaradas pessoas unidas aumentasse no mundo a cada dia. Carla, mais do que qualquer pessoa, sabia o quanto a anastomose era algo para se levar a sério. Ela estabelecera a regra de que o tratamento só poderia ser aplicado depois de um período de espera de, no mínimo, um ano, a contar da requisição. Período no qual a união física das requisitantes deveria ser avaliada por meio de um acompanhamento médico e psicológico obrigatório. Tal nível de rigidez chegava a superar o das primeiras comissões legislativas voltadas à questão, o que ajudou, e muito, a colocar em xeque as eventuais detratoras.

“Me pergunto se a gente teria passado por uma avaliação dessas.” Astrid se questionava, com a pulga atrás da orelha, enquanto aparava o cabelo de Valentina, sentadas na varanda, numa bela tarde de sol.

“Há! A gente engambelaria qualquer psicóloga.” Valentina piscou o olho e mostrou a língua.

“É sério, tonta!” Astrid deu risada. “Imagina só se nos vissem sangrando no estúdio com as ancas costuradas?” fez uma pausa com a tesoura e exclamou: “Deusa! A Carla nem sabe disso ainda, né?”

“Quer saber o que eu acho?” comentou Valentina. “Esse lance de avaliação é só para dar uma enrolada.”

“Pra ver se a dupla desiste?” Astrid retoma a franja de Valentina, que fecha os olhos.

“Se eu fosse chutar,” ela diz, “diria que pelo menos um terço desiste. E vai trocar de par umas trocentas vezes.”

“Que cínica!” Astrid brinca. “Mas não discordo, só tenho dificuldade de entender. A gente tinha tanta certeza, desde o começo. Senão acho que eu nem teria topado começar.”

“Somos únicas.” Valentina espia pela fresta do olho, em meio aos fios de cabelo cortados.

“Não somos não!” queixa-se Astris. “Tem a Júlia e a Carla.”

“Me referia a nós quatro.” Valentina sorriu. Astrid sorriu de volta.

“Terminei!” exclamou, deixando a tesoura de lado e beijando a ponta do nariz de Valentina.

“Minha vez!” ela falou, pegando a maquininha. “Qual lado quer raspar?”

Valentina só estava certa em parte. 60% das duplas que requisitaram a união permanente naquela primeira leva após a declaração pública na reabertura da instalação desistiram com menos de três meses. Das 40% restantes, Carla suspeitava que nenhuma chegaria até o final do ano. O que era, basicamente, a estimativa que fizera ao concordar com a “saída de armário” das duas, e o estabelecimento das primeiras legislações provisórias para dar conta do fenômeno.

O que lhe importava, no entanto, era confirmar que o número de requisições se mantinha constante, a despeito das desistências, com um ou outro pico ocasional quando Valentina e Astrid inventavam de conceder uma entrevista ou publicavam algum ensaio fotográfico (a taxa subira para 50% na semana que o videozinho delas escalando a mangueira viralizou!). E, das duplas que desistiam das suas requisições, apenas um percentual irrisório voltava a se tornar efetivamente “solas”. A maioria apenas trocava de parceira, ou até se mantinha com a mesma, porém com um acréscimo de paciência e cautela.

“As pessoas querem se unir, isso é um fato.” Carla explicava em uma videochamada, numa certa tarde. “Só não sabem com quem. E isso faz todo sentido pra mim!”

Ela parecia empolgada como uma criança na telinha do celular, apoiado em uma caixa de sabão em pó. Valentina e Astrid prestavam atenção, enquanto iam tirando os lençois recém centrifugados da máquina de lavar.

“Sério, gente…” continuava ela, “vocês não têm ideia do peso que isso me tira.”

“Não tenho certeza se estou acompanhando o raciocínio.” interrompeu Valentina, largando o tecido no balde.

“Não te parecia estranho que, do nada, todo mundo tinha uma parceira pra vida toda?” zoou Carla, aparentando cada vez mais estar de excelente humor.

“Sei lá, quer dizer…” Valentina balbuciou e Astrid veio em seu auxílio:

“Acho que o que a Val quer dizer é que não parece mais estranho do que todo o resto.”

“O que eu quero dizer,” Carla corta, “é que eu estava encanada! Tipo muito encanada, com todos esses pedidos de tratamento. Tava me cagando de medo, na real. Cheguei a sonhar com operações de emergência separando a galera. Sonhei que estava operando vocês!”

“Que horror!” Astrid gritou e Valentina sentiu o calafrio na pele dela em seu próprio corpo.

“Vejam, não falo de vocês, que são um caso à parte.” Carla explicou. “Tipo, muito a parte! Vocês são tipo paciente zero, se é que se aplica. Agora veja eu e Júlia. A gente está na vida uma da outra desde a primeira infância. Eu sequer consigo lembrar de um tempo que ela já não estivesse lá. E mesmo assim não foi nada fácil assumir esse desejo.

“Fale só por você!” brotou a voz de Júlia, rindo, de algum ponto do extracampo.

“Você tá aí?” espantou-se Astrid, apanhando o celular enquanto Valentina carregava o balde com os lençois. “Achei que estavam separadas hoje, sei lá porque.” 

“Tô aqui!” o perfil de Júlia surgiu atrás do rosto de Carla. “É o dia de ficar de costas!”

“A gente não se separa há quase um mês já.” Carla comenta. “Só trocamos de posição.”

“Oi, Júlia!” saudou Valentina, ainda que não enxergasse nada na tela, agora que já tinham saído pro sol. “Tudo bem aí atrás?”

“Engraçadinha!” a voz de Júlia respondeu. “Mais ou menos. Agora entendo o que queriam dizer com sentir falta dos abraços.”

“É, né?” concordou Astrid, num tom mais alto, enquanto as duas penduravam os lençóis no varal. “Não é uma posição muito acolhedora.”

“Me sinto de castigo!” choramingou Júlia. Carla deu uma risada:

“Você que quis experimentar! Eu já imaginava! Agora vai ter que me deixar curtir essa sua bunda aí, grudada na minha, pelo menos uns dias. Vai ser um trampo remover o adesivo nessa posição!”

“Hmm… bunda com bunda… deu até saudade!” gemeu Valentina, dando uma apalpada nos glúteos de Astrid.

“Pára!” ela riu, e depois se voltou para o celular, agora apoiado em uma das janelas dos fundos da casa. “Se precisarem de ajuda na hora de desgrudar…”

“Como assim ‘se’?” ralhou Carla, “Vocês vão ajudar, suas tchongas! Vocês me devem!” as quatro racham o bico.

“Mas rebobina, Carla!” disse Astrid, “Você estava explicando.”

“Então, é isso.” ela retoma, “Faz sentido eu a Júlia. A gente tem história. Mas toda aquela galera, boa parte mal se conhecia! Nunca que eu ia liberar esses procedimentos todos sem ter esses dados à mão!”

“Mas, gente… como assim?” estranhou Valentina.

“Bom, Val, na real a gente mal se conhecia, lembra?” lembrou Astrid.

“É, mas…” ela se interrompe. “Nossa… é louco, mas eu até esqueço disso.”

“E vocês passaram quase dois anos juntas antes da anastomose.” Carla diz. “O que é até pouco, se for levar tudo em conta. Mas ainda é um ano a mais do que o tempo de espera, que ninguém nem tá conseguindo passar!”

“Então seu ponto, Carla,” pergunta Valentina, “é que as galera ficou tão tomada pela pira de se unir que se agarrou à primeira pessoa que apareceu?”

“Justamente como eu achei que seria.” sentencia Carla.

“Uau! Ela é mais cínica que você!” Astrid diz para Valentina.

“Sempre foi.” Ela dá de ombros. “Foi por isso que me apaixonei por ela.”

“Eu também.” Astrid suspira.

“Adivinhem qual é o perfil das duplas que tendem a se manter na fila de espera por mais tempo?” desafia Carla.

As duas hesitam, enquanto levam o celular até a rede no jardim.

“Gêmeas!” Carla crava.

“Eu pensei isso!” exclama Valentina. “Mas achei que seria muito óbvio.”

“Pessoas são óbvias, flor.” Carla comenta, com um sorrisinho de canto de lábio. “Eu aposto com vocês: o primeiro procedimento oficial de união permanente por anastomose depois do de vocês será realizado com um par de gêmeas.”

“Antes de vocês duas?” pergunta Astrid, ambas já se acomodando na rede e apoiando o celular entre si.

“Ah é, bom...” Carla especula, com o perfil de Júlia reaparecendo brevemente por trás dela. “Talvez sim, talvez não. Vamos ver.”

“E quanto às não-gêmeas, não-irmãs, não-sei lá o que?” pergunta Valentina.

“Temos debatido sobre isso nas comissões.” diz Carla. “Às quais, aliás, seria maravilhoso se vocês participassem!” levantou uma sobrancelha.

“Deusa nos livre!” as duas exclamaram, num reflexo em uníssono.

“Você é testemunha de que eu tento.” Carla se dirige à Júlia, dando de ombros. Ela só riu.

“Mas, enfim,” retoma, “a estimativa mais corrente é que o fenômeno já está passando por… como dizer, uma estabilização. Aquele auê da novidade acabou, e agora as pessoas estão refletindo, e não mais se jogando.” Ela faz uma pausa, tentando organizar melhor os seus pensamentos. “Meu grande receio, era que quando chegássemos a esse ponto, puff! Tudo acabasse! As pessoas acordariam dizendo ‘Meu, que surto foi esse? Onde eu estava com a cabeça?’ e o mundo voltaria a ser como era antes, com a galera toda tentando entender de onde aquela histeria coletiva veio.”

“Eita…” murmurou Astrid, a ficha caindo.

“Nossa, miga!” exclamou Valentina. “Saquei.”

“É, migas…” concordou Carla, “o limiar entre ‘cientista visionária’ e ‘cientista louca’ pode ser bem tênue.”

“Ou entre inspiradoras e aberrações…” sussurrou Valentina e Carla assentiu.

“Mas não é o que está acontecendo?” Astrid retoma.

“Não.” Carla diz. “Já temos dados mais que suficientes para demonstrar isso. A tendência não está passando, está se refinando. As pessoas não estão desistindo, só estão dando um passo atrás. E procurando. Realmente procurando. Pela pessoa certa.”

Um calor se espalha pelos corpos de Astrid e Valentina, parecendo emanar de seus chakras fundidos. Uma sensação de vertigem que as faz ofegar, as peles se arrepiando, num gozo quase metafísico. Suas bocas se movem, tentando achar algo para se expressar, mas nada daria conta. Carla sorri para elas, partilhando de sua emoção.

“As pessoas querem se unir.” reafirma ela, “Não é histeria, não é surto coletivo. É real. E se a minha experiência serve de parâmetro, eu diria que sempre quiseram. Só precisavam das condições certas para trazer isso à tona. Para reconhecerem isso em si mesmas.

“Uau!” Valentina consegue, enfim, exclamar, rindo de si mesma por soar tão boba. “Bom… e agora?”

“E agora?!” espanta-se Carla, aos risos, “Sei lá! Não tá bom? Já tô feliz só de saber que nenhuma de nós vai ser presa! Ou queimada na fogueira!”

“Agora…”Júlia declara, do nada, forçando Carla a se virar de lado para aparecer na câmera. “acho que está na hora da gente ter aquela conversa, meninas.”

“Ai, caramba!” grita Valentina, agarrando o celular, “Você terminou a pesquisa?”

“Terminar a gente não termina nunca.” Júlia confabula, com Carla espiando por sobre o seu ombro dessa vez. “Mas já escavei o bastante, eu acho. E agora que Clara já pode respirar, me parece uma boa hora para uma noitada de vinho e história.”

“Por favor! Hoje?” implora Astrid.

“Não.” interrompe Carla. “Sábado à noite, pode ser? A gente vai ter que trocar de posição, como é que eu vou dirigir com você nas minhas costas?”

“Achei que tinha pensado em alguma coisa.” Júlia emenda. “Como iríamos pro laboratório?

“Júlia, eu tirei folga, não é possível que não lembre! Estava bem ali, literalmente grudada do meu lado!”

“Ups!” exclama Júlia, com um sorriso amarelo. “Eu devia estar viajando, desculpa.”

Valentina e Astrid já estavam às gargalhadas nesse ponto.

“E vocês riem, né?” zoa Carla. “Estão vendo com o que eu tenho de lidar?” e se contorce para um desajeitado beijo na boca.

“Peguem um uber!” diz Valentina, “A gente desgruda vocês aqui.”

“A gente prometeu ajudar, não foi?” complementa Astrid.

“Brigada, amores,” Júlia responde, “mas é melhor sábado mesmo, preciso organizar umas coisas. Vai ser… uma conversa e tanto.

“Ela fala sério.” Carla diz, mudando repentinamente de tom. “A gente dá um jeito aqui, não se preocupem. Não quero ficar de costas pra ela nessa conversa.”

A expressão de Júlia muda também. Ela estende os braços para trás, afagando as faces de Carla, e move a cabeça, esfregando seus cachos nos cabelos loiros dela. Murmura alguma coisa que Valentina e Astrid não conseguem ouvir, mas compreendem, aninhando-se com mais ternura uma na outra.

“Esperamos vocês.” dizem em uníssono.

“Estaremos aí.” as duas respondem da mesma forma. “Beijos!” E desligam.




13. Aula de Mitologia

“Tempo demais…” murmurou qualquer uma das quatro, em meio àquele “quadriabraço” que parecia durar para sempre, na frente da varanda da casa de campo de Astrid e Valentina. Ninguém fazia o menor movimento para sair dali e nenhuma delas se importaria se jamais saíssem. Eram como um totem, o ídolo antigo de uma deusa quádrupla, protegendo a casa contra todo o mal. No fim, foi mais o desejo de se olharem nos olhos que as motivou a se desgrudarem, ao menos um pouco, acariciando-se com aquela miríade de braços que mal sabiam dizer de quem era quem.

“Não estava encanada de dirigir com alguém nas suas costas?” zoou Valentina, fazendo um gesto em direção às pélvis coladas de Carla e Júlia, semi visíveis através do decote entre seus vestidos costurados juntos.

“Deusa do céu, é mesmo!” exclamou Astrid, olhando rapidamente para o carro estacionado sob a mangueira. “Como fizeram?”

As duas cruzam o olhar e riem, meio sem jeito, e Carla apenas comenta:

“Vocês não acreditariam em como essa aí consegue se encolher toda no meu colo.”

“Sabe coalas?” Júlia dá uma piscadinha. “Assim, bem agarradinha.” e abraça Carla, meio que escalando-a até ficar pendurada nela, com as pernas trançadas atrás de suas costas.

“Uau!” Valentina se impressiona e se volta para Astrid. “Pequenas, mas fortes as duas, né?”

“Versáteis e portáteis.” diz Carla, deixando Júlia voltar a pôr os pés no chão.

 “E aí? Como se sentem?” pergunta Valentina, e acrescenta: “Posso tocar?”

“Com carinho.” diz Júlia, pegando a mão dela e a conduzindo até a camada de adesivo que as conecta pelos ventres. Carla faz o mesmo com Astrid. As quatro riem, excitadas.

“Não é permanente ainda, claro.” explica Carla.

“Mas unir os chakras é uma coisa poderosa mesmo assim, não é?” observa Astrid.

As duas giram os olhos: “Nossa, e como!” Carla exclama. “Como é que vocês dão conta?”

“Miga,” Valentina se achega até encostar o nariz na orelha dela, “vocês ainda não viram nada!”

“Vamos pra dentro!” diz Astrid. “Temos vinho e queijo!”

Curtiram aquele reencontro sem pressa, como se não houvesse uma razão especial para estarem ali. A noite foi caindo rápido, envolvendo a sala numa penumbra acolhedora que as envolvia como uma concha. Sentadas no carpete, em meio às almofadas, elas se deixavam levar por afagos, chamegos e pernas emaranhadas, sabendo muito bem que jamais teriam uma intimidade maior com ninguém mais. Eram melhores amigas e companheiras perfeitas, e era como se sempre tivessem sido assim.

“E o que me dizem…” Júlia começa, selecionando algumas imagens no seu tablet. “disso aqui!” e passou o aparelho para Valentina e Astrid.

“Eu já tinha visto algo assim.” comenta Astrid, com admiração. Valentina, que tinha o rosto colado ao dela, ia passando o dedo pela tela, de uma imagem para outra. “O que são?”

Eram gravuras antigas, claramente escaneadas de vários livros diferentes, nos estilos mais diversos. Representavam criaturas duplas. Humanas, em princípio, mas unidas de variadas formas. Duas cabeças, oito membros, corpos conectados pelas costas, ventres ou lados, ou mesmo fundidos em uma coisa só. Algumas eram aflitivas, outras harmoniosas. Mas todas pareciam emanar uma aura de dignidade, e inegável plenitude.

Carla e Júlia se ajeitaram melhor numa posição sentada, encostando-se mais junto às duas, que admiravam as imagens com fascínio crescente. Valentina encheu a taça estendida de Carla quase sem se dar conta do que estava fazendo. Júlia aguardava sem pressa que elas assimilassem o que estavam vendo.

“São chamadas de andróginas, entre outras nomenclaturas.” ela murmurou, com os ombros encostados aos ombros de Astrid.

“Achava que isso era outra coisa.” observou Valentina.

“O sentido mais conhecido é apenas um de seus aspectos, e sequer o mais fundamental.” Júlia explicou. “Naquilo que nos importa, elas eram seres duplos. A humanidade primordial.”

Valentina e Astrid se sentiam em transe. Tais conceitos não eram exatamente uma novidade para elas, mas serem re-apresentados naquele contexto, depois de tudo o que haviam vivenciado, lhes pegou de modo profundo, algo que não estavam esperando.

“Fazem parte de muitas culturas.” Júlia continua. “Com muitos significados e interpretações. Mas o mito mais difundido, talvez, é de que as divindades teriam criado a espécie humana una, íntegra e perfeita.”

Ela faz uma pausa, observando-as. Elas afastam o olhar das figuras, percebendo o silêncio, e a encaram. Carla toma um gole de vinho, os óculos embaçados, a expressão absorta.

“Tão perfeita,” Júlia retoma, “que a temeram. Temeram sua sobrepujação. Era o que teria de ser, entendem? A ordem natural das coisas.” Fez um gesto de desdém. “Mas quem quer ser sobrepujado, né?”

“Então as cortaram ao meio.” Astrid sussurrou, os olhos expressando um horror profundo e primal.

“E cá estamos nós.” Júlia completou.

Um momento de silêncio íntimo, em que era possível ouvir o vento murmurar por entre as folhas das árvores.

“Ou estávamos nós.” especulou Valentina.

Carla se moveu, ajeitando-se melhor no carpete e mudando a perna de posição. A sola do pé encontrou a sola de Valentina, que abraçou os dedinhos do pé com os seus.

“Você acredita nisso, miga?” Valentina perguntou.

“Acreditar?” ela riu. “Olha só pra nós?” ela tocou os cachos de Júlia, que sorria para ela. “Eu creio…” ela faz uma pausa, deixando a ironia assentar, “como a cientista que sou, que não se pode colocar certas coisas em palavras impunemente.”

“Um brinde a isso.” sussurrou Valentina, e todas pegaram suas taças e beberam antes que Carla continuasse.

“Mas eu vejo… e eu sinto… que estamos vivendo em um mundo que é melhor do que o de poucos anos atrás. Eu não compreendo isso.” Ela fita, alternadamente, cada uma das três. “E não sei se é pra se compreender. Só sei que eu vi isso começar.” Seus olhos umedecem. “E eu ainda me lembro do que senti. E como eu me sentia antes. A minha vida inteira.”

“Como todas nós nos sentíamos.” realizou Astrid. “Em toda parte.”

“Aleijada.” Carla soltou, com dificuldade. “Mutilada.” Deu de ombros. “Eu era assim. Como pudemos ser assim?” perguntou, olhando nos olhos de Júlia. “Por tanto tempo…”

Júlia segura o rosto dela e a beija, com ternura. Valentina passa o braço por trás das costas de Astrid e a aperta ainda mais para junto de si.

“E eu vi…” Carla continua, tirando os óculos e limpando-os no vestido. “Eu vi a realidade se curvar perante vocês. Desde o começo. Dois corpos que pareciam funcionar melhor juntos que separados. A natureza conspirando para tornar tudo isso possível, pra vocês, para nós, para todas nós!” Ela hesita um momento, e então afirma: “Eu sou uma cientista. E como tal, não posso negar o que vejo.” Coloca a mão sobre o coração. “E o que eu sinto.”

“Não sei o que fazer com isso, Júlia.” declara Astrid, depois de um momento. “É lindo… e… poderoso. Mas eu não sei o que pensar.”

“Mostra pra elas.” pede Carla.

Júlia se estica até a bolsa sobre o sofá e tira dela uma pasta. De dentro, tira uma série de folhas amareladas e seladas em plástico, junto com algumas anotações.

“Pouquíssimas pessoas tiveram acesso a isso.” ela explica. “Foi uma das últimas coisas que fiz separada da Carla. Naqueles intervalos, quando ainda não podia entrar no laboratório. Mas tudo bem, não teriam permitido a Carla no museu também. Não nessa seção.” virou-se para ela, “Mas isso já está mudando também, caso esteja interessada.” Carla sorri.

“Isso é…” Valentina arrisca, “magia?”

“Zoroastrismo!” corrige Júlia. “E um pouquinho de cabala.”

“Eu sabia!” grita Valentina, “Você é uma bruxa!”

“Não, sou uma historiadora.” Júlia insiste. “Mas suponho que as pessoas que escreveram isso poderiam ser chamadas assim.”

Carla coloca a mão em concha ao redor da boca e, por trás de Júlia, forma as palavras “Ela é bruxa sim!”, sem emitir som.

“E o que é isso, historiadora?” Astrid pergunta, tentando segurar o riso.

“Um ritual.” Júlia responde, voltando-se para ela. Valentina, do nada, dá um gritinho, quando Francis, a gata número cinco, pula de repente no sofá atrás delas.

“Desculpa!” ela pede, juntando as mãos e sorrindo molecamente.

“Ai, que coisa mais fofa!” Júlia exclama, acariciando a gata, que se derrete ao seu toque.

“Júlia,” ralha Carla, aos risos, “foco!”

“Perdão!” ela se recompõe. “Onde eu estava?”

“Na bruxaria.” Valentina responde.

“O ritual.” corrige Júlia. “É antiquíssimo, milenar. Complicadíssimo de levar a cabo. Na real, meio que impossível, como quase tudo que é realmente legítimo em matéria de ocultismo.”

“E para fazer o que?” Astrid pergunta, ainda que já imaginasse, com certa ansiedade.

“Voltar ao Éden.” Júlia declara, com desconcertante naturalidade. “Restaurar a androginia primordial. O estado de graça anterior à queda.” Ela dá de ombros. “A condição de direito da espécie humana.”

Há um momento de suspensão quase cômico, com as duas encarando Júlia com as bocas abertas e as caras pasmadas, lentamente se voltando em direção a Carla.

“Ei, não olhem pra mim!” ela protesta, erguendo os braços. “Eu só faço adesivos!”

“Peraí, Júlia, vamos com calma.” Astrid se antecipa, trocando um olhar com Valentina, ainda de olhos arregalados. “Você… está nos propondo tentar realizar esse ritual?”

Júlia abre um sorrisão enorme e extraordinariamente doce.

“Amores… vocês já realizaram.”

Uma avalanche de expressões confusas e desconexas atravessou os rostos de Valentina e Astrid. De todas as respostas possíveis, essa era a única que jamais teriam imaginado, e nenhuma delas tinha muita certeza se tinha de fato compreendido no que aquilo implicava. Suas bocas se abriam e fechavam, alternadamente, antes que qualquer pergunta coerente pudesse sair. As mentes fervilhavam, como se à beira de algum tipo de realização, a qual, no entanto, não ousavam chegar.

Júlia suspirou, fitando-as com absoluta ternura. Dando-lhes tempo. Carla sorria, o rosto ao lado do dela.

“Não tinha…” Valentina tentou ousar, hesitante. Astrid voltou-se para ela enquanto falava, ainda tentando pensar. “Não tinha dito que… bem… que era impossível?”

Júlia trocou um sorriso com Carla, que falou:

“Impossível como dois tipos sanguíneos incompatíveis virarem, do nada, uma coisa só?”

Astrid segurou a mão de Valentina com força suficiente para machucar. Ela mal sentiu.

“Então…” Júlia retomou. “Eu sei que isso é bem doido, mas deixa eu tentar colocar dessa forma… Se eu tivesse topado com esse material em qualquer outro momento, nunca o teria considerado como nada além de uma fonte primária interessante. Outro registro de um mito, mais uma pecinha no mosaico das religiões comparadas. Mas traduzir isso agora, depois de tudo o que vivemos… meu, isso explodiu minha cabeça! O que é descrito aqui é um ritual incrivelmente complexo, proposto para ser realizado no decorrer de anos, ininterruptamente. Descreve duas pessoas que, por sua livre e espontânea vontade, decidem viver como uma. Tornarem-se uma. Claro que rola as particularidades de contexto e época, e a terminologia é puramente mágica…”

“Nada de anastomose, imagino?” pergunta Carla. Júlia ri.

“Fala-se de unguentos, de ataduras trançadas com couro animal, fluidos compartilhados e peles costuradas…”

“Fizemos isso também…” murmurou Astrid, espiando Carla timidamente.

“Eu sei.” ela deu uma piscadela.

“Somando tudo…” continua Júlia, “é um rito longo, cansativo e torturante, que, em princípio, exigiria uma força de vontade sobre humana para ser levado até o fim.” ela dá um risinho. “A gente costumava brincar, minhas colegas de mestrado e eu, que os rituais de magia de qualquer sistema ou religião pareciam ter sido feitos de propósito para que ninguém jamais conseguisse fazer. Assim a magia poderia permanecer para sempre como um mistério, uma possibilidade.”

“Mas, na real, tudo o que é preciso é o desejo profundo e verdadeiro de ir até o fim.” declara Astrid, as palavras se organizando em sua mente na medida em que ela as pronunciava.

Júlia assente, com os olhos úmidos e brilhantes.

“Mas não é o fim.” ela diz e toca o plástico que envolve as folhas. “O que se propõe aqui é um reinício. ‘Religare’.”

“Não tinha um conto,” divagou Valentina, “que dizia que quando os nove milhões de nomes secretos da Deusa fossem descobertos… as estrelas cairiam?”

“Nove bilhões!” corrigiu Carla. “Sua nerd enrustida.” completou, mostrando a língua pra ela.

“O inimaginável.” declara Júlia. “É a base da magia. Não funciona se racionalizada. E não é uma mera questão de fé, também, porque isso não diz nada. É o desejo, como Astrid disse. E quem é que se permitiria conhecer seu desejo mais profundo nesse mundo desencantado em que vivemos?”

“Em que vivíamos?” Carla pergunta.

“Sim…” Júlia murmura. “Sim, em que vivíamos.” volta a encarar Valentina e Astrid. “É o que eu acredito.” deu de ombros. “Pronto, falei!”

“Tenho medo de acreditar.” diz Valentina.

“Eu também.” diz Carla. “Medo porque eu quero acreditar e não há nada mais anticientífico que isso. Mas olhem só para nós. Viemos dirigindo até aqui, amalgamadas no carro como uma coisa só! Vocês não são mais uma exceção! Temos vivenciado isso no nosso dia a dia, toda aquela… intercambialidade, que tanto me espantava de constatar em vocês. E é tão bom!” ela fecha os olhos, numa expressão de êxtase. “E temos observado isso em todas as pacientes que perseveram no programa para união permanente. Está se tornando o nosso principal critério de seleção. Chega a ser espantoso de tão óbvio. Basta observar uma dupla por um tempo para se ligar se é mesmo pra valer ou se elas só estão forçando a barra.”

Ela falava com cada vez mais veemência e empolgação. A ponto das outras três chegarem quase a esquecer do que estavam falando.

“Gente, pelo amor da Deusa, eu só falo assim aqui, com vocês.” Carla acrescenta, caindo na real. “Em público eu continuo a cética feroz de sempre. Quer dizer… quase.” elas riem.

“Mais vinho?” pergunta Valentina.

“Por favor!” respondem todas, em uníssono. Valentina completa as taças e elas bebem em silêncio, por um tempo, com as folhas plastificadas espalhadas pelos seus colos.

“Acho que a única pergunta que nos resta agora seria…” retoma Astrid, “E agora?”

Júlia termina de tomar um gole e responde: “Hmm… então… tomei a liberdade de organizar um pequeno dossiêzinho pra vocês. Um… resumo, digamos assim, de tudo isso. Leitura de cabeceira, sabem?” sorri para elas e lhes entrega um volume encadernado em espiral.

“Caramba, Júlia, você fez sim uma tese!” espanta-se Valentina.

Júlia encara o volumão com uma cara divertida, e solta: “É louco as coisas que a gente faz sem nem perceber quando está realmente com vontade, né?”

“Eu que o diga.” diz Carla. “Já estava grudada nela em definitivo por todo o último terço.”

Valentina e Astrid folheiam o encadernado, cheio de notas, ilustrações e explicações.

“Aí vocês podem ver com mais calma de onde tirei tudo isso. Não se trata, nem de longe, de fonte única. Fala-se desse mito primordial e dos ritos para resgatá-lo em trocentas culturas, sistemas mágicos e tradições, e de trocentas formas diferentes. Eu só selecionei o que me pareceu mais bem acabado.” Indicou novamente as folhas plastificadas. “No fim, tem uma transliteração de tudo o que tem aqui, incluindo o que me parece ser… o ato final.”

“Que seria?” as duas falam juntas, quase no automático.

“Concluindo-se o ritual, as duas que agora são uma invocam a Deusa para reconhecer e abençoar a sua união.” declara Júlia. “E uma nova aliança com a humanidade estará, por fim, selada.”

“Acredita nisso?” Astrid pergunta, mortalmente séria.

“Acha que deveríamos fazer isso?” Valentina acrescenta, ainda mais séria.

“Sinceramente?” Júlia diz. “Não sei. Acreditar é uma palavra tão difícil… O que eu sinto, aqui…” e põe a mão sobre o coração, “é que entregando isso pra vocês, o meu papel está cumprido. Assim como o papel de Carla se cumpriu, quando lhes forneceu os meios para se tornarem… uma.”

“E agora é com vocês.” Carla conclui.

Há uma pausa. Então Valentina e Astrid se jogam, literalmente, na direção de Carla e Júlia. Astrid segura o rosto de Júlia entre as mãos e Valentina faz o mesmo com Carla, olhos nos olhos, pontas dos narizes se tocando.

“Escuta aqui…” diz Astrid, com veemência.

“...o papel de vocês com a gente não se cumpre nunca!” determina Valentina.

“Está claro?” dizem as duas.

“Assim espero.” Carla responde.

“Amém!” diz Júlia.

E as quatro se beijam.



14. As Bailarinas na Tempestade

Dava pra sentir a eletricidade estática no ar naquela manhã de primavera. Aquele tipo de pressão atmosférica que prenuncia a mudança no tempo. A iminência de uma precipitação. Astrid e Valentina acordaram por volta das dez e meia no que, para todos os efeitos, seria um dia normal. Desembaraçaram-se dos lençois e cambalearam até o espelho do banheiro para encarar suas caras amassadas enquanto escovavam os dentes. Via de regra, nunca conversavam antes da primeira xícara de café, não que precisassem dado o seu nível único de cumplicidade. Quase que no automático, lavaram alguns restinhos de louça enquanto a cafeteira trabalhava, e deslizaram, no seu gracioso passo de caranguejo, até a janela larga da sala, de onde podiam observar as nuvens em formação no horizonte distante, enquanto as xícaras cheinhas aqueciam as suas mãos.

Valentina sentiu a palma de Astrid acariciando suas costas e passou o braço livre por trás dela para fazer o mesmo. Levavam suas xícaras à boca quase sempre ao mesmo tempo, sem sequer notar, e ficaram ali, apreciando seu café com canela, e se deixando atravessar pela atmosfera indefinível que parecia estar se instalando. Não sabiam, e nenhuma delas sentiu necessidade de comentar, que tinham tido sonhos muito parecidos essa noite. De um tipo que lhes era bastante comum no começo, quando nada além de um frágil trançado de corda as unia. Sonharam que estavam sozinhas. Nada de Astrid e Valentina. Nada de Uma. Apenas Valentina. Apenas Astrid. Mas, curiosamente, não fora um pesadelo. Não se fizera acompanhar pelo mau estar e a angústia. Era como um passo atrás, para melhor observar o caminho. Um momento de reflexão. Valentina se viu num amplo descampado, sentada na grama e admirando os arredores. Levantou-se para caminhar e seguiu até quase alcançar a elevação ao longe, re-experimentando o isolamento com um tipo de distanciamento clínico. Astrid também caminhara, mas pelas ruas de uma grande metrópole, fervilhando de gente de todos os tipos. Ninguém lhe dirigia a palavra. Ninguém olhava pra ela. Ela não ligava. Só seguia em frente, numa espécie de indiferença contemplativa. Ambos os sonhos acabaram ao mesmo tempo, quando, talvez pressentindo a mudança no clima, as duas se remexeram na cama de modo a repuxar a pele entre suas pélvis compartilhadas. E ao abrirem os olhos, cada uma viu o rosto da outra, como sempre a poucos centímetros do seu.

“Tô afim de não fazer nada hoje.” comentou Astrid, quebrando o silêncio, entre um gole de café e outro. Valentina deu de ombros:

“Por que não?”

“Né?” Astrid confirmou. Ambas sabendo, lá no fundo, que não era bem assim. Já estavam fazendo. O que, exatamente, ainda era a questão.

Tinham passado dias lendo e relendo o dossiê de Júlia. Em geral na cama, à noite, antes de dormirem. Leitura de cabeceira, como ela disse. Continuavam não sabendo muito bem o que pensar daquilo. Júlia escrevia com uma paixão que não lhes parecia lá muito científica, mas com certeza era contagiante. Não que conseguissem acompanhar muito bem todas as correlações, mas captavam o bastante para confirmar que suas conclusões não careciam de uma base. O tal “ritual de união”, na falta de nome melhor, seguia suas experiências no decorrer daqueles dois anos com um nível de paralelismo que não podia ser ignorado. Mas, até aí… No fim, sempre se chegava a um ponto em que tudo se torna uma questão de fé.

“Beleza, a Deusa nos abençoa… e daí?” Valentina chegara a perguntar em algum momento daquela noite.

“E daí? Como assim?” Júlia rira, já bastante bêbada.

“O que acontece?” Valentina insistiu.

“Já falei, a nova aliança, o retorno ao…”

“Não”, Valentina se ajeitou com cuidado, para não acordar Carla, “quero dizer, com a gente.”

“Ai, não sei…” Júlia divagou, remexendo os cabelos de Astrid. “Não tenho certeza se isso ainda é sobre vocês.”

Astrid ia pensando cada vez mais nesses fragmentos de conversas ébrias conforme o dia ia passando e a tempestade se aproximando. Tinha dias em que até a ideia de fazerem algum tipo de oração à Deusa parecia um tanto ridícula. Mas hoje… havia eletricidade no ar. As folhas das árvores sussurravam ao redor delas em resposta ao vento que as acariciava. O céu não chegou a clarear. E ainda assim a chuva não vinha. Como se estivesse esperando.

E no jardim, sentadas no gramado, elas falavam de amenidades e jogavam conversa fora. Sobre o botijão de gás que precisava ser trocado, o projeto de design a ser finalizado. Tudo para não pronunciar em voz alta as ideias exóticas que lhes passavam pela cabeça desde aquela noite… mágica?

“Vocês fazem perguntas demais!” ralhara Júlia, com a voz deliciosamente pastosa, deitada de costas no carpete, com Carla largada por cima dela. “Magia não combina com pergunta!” Ela ergueu as pernas pra cima, ao redor de Carla, e começou a pedalar o ar, rindo cada vez mais. “É como andar de bicicleta! Se você racionaliza você cai! Você não acha, Ca?”

“Eu acho que cê tá é beubida!” Carla zoou e Júlia gargalhou com vontade, trançando as pernas ao redor dela. Nunca a tinham visto tão livre, solta e feliz. E linda como um anjo.

E o bate papo no gramado foi morrendo junto com a tarde, até que as duas caíram num dos seus habituais silêncios confortáveis. Admiravam a paisagem e observavam as nuvens se juntando no céu. Vez ou outra, elas cruzavam o olhar e chegavam perto de dizer alguma coisa, tipo: “E se o sangue delas não se misturar?” Pois era isso que achavam que estava de fato adiando a união permanente de Carla e Júlia. Não precisavam perguntar para saber. Intuíam que as duas também não tinham tipos de sangue compatíveis e se perguntavam se aquele fenômeno inexplicável (mágico?) iria se repetir com elas.

E se não se repetisse?

O som dos trovões tornava-se mais constante e até ritmado, pulsando em uníssono com seus corações. E se não se repetisse? Mas o que teriam a ver com isso? Que controle elas tinham? Nunca teriam imaginado que aquele encontro fortuito na vernissage chegaria nisso.

(Fortuito? E o que haveria de fortuito numa carreira inteira nas artes sinalizando seu desejo mais profundo para a alma irmã que queriam acreditar existir em algum ponto da multidão?) 

Nunca tiveram intenção de performar ritual algum.

(E, no entanto, performar não tinha sido justamente o seu ponto de partida?)

Tudo o que queriam era viver o desejo de seus corações.

(E não era conveniente que dispusessem de meios e estilos de vida tão maravilhosamente adequados para tanto?)

E não foi como se sempre tivesse sido fácil, ou mesmo prazeroso, como se algum destino manifesto estivesse constantemente abrindo os caminhos e removendo os obstáculos.

(Seja pelo prazer, seja pela dor. Não é assim que as divindades sempre dão a saber, e fazer valer, as suas vontades?)

E se o mundo agora as compreende e, de algum modo, até partilha de suas obsessões, não seria por demais presunçoso pressupor que tinha sido por causa delas? Quando foi que tentaram convencer a quem quer que seja?

(E, no entanto, não era maravilhoso saber que poderiam viver num mundo em que pessoas como Carla e Júlia também existiam?)

E se o fenômeno não se repetisse?

Gotas de chuva tocaram suas peles em um arrepio repentino, e foi aí que se deram conta de que passaram todo o crepúsculo olhando nos olhos uma da outra. O vento rodopiava e misturava os seus cabelos e o flagor dos relâmpagos lhes emprestava uma aura azul. Astrid e Valentina respiravam ofegantes, e o ar que uma inspirava parecia expirado pelos pulmões da outra. Levantaram-se, sem se falar, e com uma graça e leveza ainda mais fantástica do que o habitual, se puseram a dançar.

Como uma Shiva humana, as duas rodopiam em evoluções complexas de braços e pernas, os dedos se trançando no ar em padrões estranhos e significativos, em meio à uma canção murmurada que talvez já fosse antiga quanto as andróginas originais saborearam o êxtase nas colinas da Terra primordial. Que língua seria essa? Teriam aprendido a letra em algum lugar do dossiê? O ar se impregnava de uma energia palpável, uma presença intensificada por cada relâmpago, cada ribombar dos trovões. Seus movimentos ficavam mais frenéticos, emanando a partir de seu centro, de seus chakras interconectados. Se contorcendo, se friccionando, num frenesi crescente e enlouquecedor.

Palavras de poder começaram a brotar em uníssono de suas gargantas sem que elas mal se dessem conta de que nunca as tinham ouvido. Vinham de fora, vinham do além. A dança prosseguia, cada vez mais intensa, seus corpos se contorcendo juntos de uma forma quase sobre humana, ora esticando-se como se para alcançar a tempestade, ora indo ao chão, em êxtase, como um nó humano em movimento perpétuo, os cabelos misturados, as quatro pernas se enrolando e desenrolando em movimentos espasmódicos, os pés se esfregando, os dedos das mãos se entrelaçando. A canção elevando-se em notas cada vez mais altas, misturadas a gritos de prazer que mal pareciam se originar delas, e sim do próprio universo.

E então aconteceu. Como uma explosão, não externa, mas interna. As duas gritaram e apenas uma voz se fez ouvir. Seus corpos desmoronaram, exauridos, na grama empapada, onde as duas se largaram sentadas ao chão, entrelaçadas, abraçando-se com toda a força, respirando ofegantes, encharcadas de chuva e suor. Impossível dizer quanto tempo ficaram ali, apenas respirando, incapazes de falar ou de pensar, tomadas por sensações novas, estranhas e inconcebíveis. Até que, pouco a pouco, foram se dando conta do que havia acontecido.

Astrid olhou pra Valentina e viu seu próprio rosto. Valentina olhou para Astrid e reconheceu a si mesma pelos olhos da parceira. Podiam se ver, e ver uma a outra, ao mesmo tempo e sem sobreposição. Cada toque transmitia uma sensação dupla, um simultâneo tocar e ser tocada. Astrid sentiu um comichão na pele e, instintivamente, coçou as costas de Valentina, que compartilhou seu alívio. Abriram a boca para falar e, assim que se deram conta de que o faziam simultaneamente, perceberam que falar sequer era mais necessário. Suas mentes estavam juntas. Seus pensamentos se encontravam. Sentiam juntas. Raciocinavam juntas. Respiravam juntas. Era indescritível!

Levantaram-se, com ainda mais graça do que já faziam antes, como se todo corpo humano sempre tivesse sido formado por dois conjuntos de braços, pernas e cabeças, interligados pela virilha. Olharam ao redor, uma por sobre os ombros da outra, cada uma numa direção, e viram todo o panorama simultaneamente. 360 graus. O horizonte, os céus, os vales, a tempestade que se amenizava e agora as banhava gentilmente, como num batismo. 

Astrid quase se desfez de prazer ao sentir a pele de Valentina arrepiar. A visão de Valentina nublou, por um instante, ao sentir a presença de Astrid em sua mente como nunca poderia ter sentido antes, por mais juntas que já estivessem. Todas as fronteiras entre elas caíram, tanto no corpo, quanto na alma, e de agora em diante, não haveria mais como alguém dizer onde uma começava e a outra terminava.

E, ainda assim, sentiam que continuavam a ser Valentina e Astrid. Duas mulheres, nascidas a quilômetros uma da outra, de famílias diferentes, e com vidas distintas, até o dia que se encontraram numa vernissage. E fazia sentido que fosse assim. Se tivessem perdido a consciência de si mesmas, se tivessem se tornado, literalmente, um único ser, voltariam à estaca zero: um indivíduo único, sozinho na face da Terra. Compreendiam isso agora, mais do que nunca. Esse era o todo. Esse era o verdadeiro culminar da sua busca. O verdadeiro êxtase. Não duas em uma. Uma em duas. Nada menos que isso poderia ser o bastante.

“Somos… Uma”, declararam às estrelas, que surgiam entre as nuvens que se dissipavam. “Nós… somos… Uma!” gritaram em uníssono para a lua cheia que agora lhes sorria. “Nós somos… realmente… Uma!”, sussurraram, sentindo, no âmago de suas almas misturadas, que seus corpos fundidos tinham se tornado mais jovens. Que um vigor renovado e intenso agora as animava. Sabiam, em seu íntimo, que haviam sido, de alguma forma, abençoadas. Estavam além do ciclo da vida e da morte. Não envelheceriam. Seus corpos, perfeitos em sua união, jamais se deteriorariam. Estavam tão certas disso, quanto do vínculo que agora sabiam que já as unia mesmo antes de terem nascido. Esse era o Éden, afinal. A plenitude anterior a queda. E antes da queda, não poderia haver morte.

“Somos UMA!” gritaram, mais uma vez, correndo, dançando e se amando através da noite fresca, renovada e plena de promessas. “Somos… UMA!”

E, como as bailarinas de chumbo na penumbra, sabiam agora que o seriam para sempre.




Epílogo

Isso foi há um ano.

Nesse meio tempo, os nomes de Valentina Vexley e Astrid Velvet quase desapareceram do imaginário coletivo. Em suas raríssimas, ainda que celebradas, aparições públicas, todas se referiam a elas apenas como Uma. Evitavam se portar como uma espécie de porta-voz da grande mudança, escapulindo das controvérsias que inevitavelmente foram surgindo. Sua suposta imortalidade se tornara uma lenda urbana, jamais negada, e tampouco confirmada. Apenas Júlia e Carla sabiam da verdade. Haviam performado a união de seus chakras pelo processo de anastomose cerca de duas semanas depois. E, sem surpresas, sentiram se abater sobre elas a mesma transfiguração que Valentina e Astrid haviam experimentado sob a tempestade. Até o momento, eram a única outra dupla a chegar naquele estágio.

Carla tinha lá suas dúvidas sobre a tal imortalidade. Não negava o que sentira, muito menos o êxtase da mistura de seus pensamentos com Júlia, mas não deixava de ser uma cientista, que não podia ignorar que continuavam sentindo fome, sede e, pela graça da Deusa, ainda podiam ficar bêbadas! Exames físicos indicavam que ao menos o vigor renovado não era só uma impressão, e tanto a sua alergia quanto as cicatrizes nos quadris de Uma pareciam ter (magicamente?) desaparecido. Sua teoria era que o mecanismo genético de autodestruição das células (que é a verdadeira causa do decaimento generalizado do organismo, uma vez atingida a sua maturação) havia sido, de alguma forma, “desativado”. O que, em princípio, lhes permitiria continuar indefinidamente, mas não havia nada que lhe fizesse crer que não morreriam se seus órgãos vitais acabassem sendo danificados. Júlia, por outro lado, tinha a mais plena convicção de que suas almas haviam sido unidas, e que, seja lá o que fosse que a morte representasse, tudo que lhe importava era que iriam descobrir juntas. Na amálgama onde seus pensamentos e sentimentos se misturavam, tal arranjo não lhes parecia nem um pouco insatisfatório.

Valentina e Astrid não discordariam, ainda que, no fundo, tivessem certeza de que nenhuma das quatro jamais morreria. Já quanto às próximas que viriam, não sabiam muito bem o que pensar. O mundo daria conta de uma população crescente de parceiras imortais? Não que parecesse um problema para tão já, dada a lentidão exasperante do processo. Tinham até dificuldade para compreender o quão difícil era para a maioria das pessoas achar o seu par ideal, ou mesmo as idas e vindas de duplas que tudo indicava terem sido feitas uma para a outra. Mas talvez fosse melhor assim. Uma mudança lenta, segura e gradual. Notavam que, em meio às notícias do dia a dia, começava a surgir indícios de que as taxas de natalidade, juntamente com a procura por serviços de fertilização in vitro, estavam decaindo, sem razão aparente, ao mesmo tempo que uma quantidade absurda de novas duplas só aumentava a cada dia, a despeito de quão poucas parecessem se aproximar do momento da finalização.

“Mas agora vai!” saudou Carla, erguendo a taça num brinde. “A data está marcada e tudo indica que vai rolar. A primeira dupla a passar oficialmente pelo processo de anastomose sob a nossa supervisão!”

“Ehhh!!!” gritaram todas em coro, com as quatro taças tilintando.

“E aí?” perguntou Astrid, usando a boca de Valentina. Mesmo depois de um ano ainda se confundia, especialmente na terceira taça. “Opa!” falou na própria voz, “Desculpa, mas e aí? O que vão fazer quando elas começarem a enxergar pelos olhos uma da outra na frente de vocês?”

“Bom…” Carla terminou o gole, “se isso acontecer…”

“Se?!” zoou Valentina, fazendo questão de se dirigir à Júlia através da boca de Astrid, só de sarro. “Olha só a louca, a essa altura do campeonato?”

“Se acontecer,” repetiu, com ênfase no ‘se’, “suponho que deixaremos a mística assumir.”

Astrid levantou a sobrancelha. “Quem falou isso? Foi você, Júlia?”

As duas trocam um olhar de cumplicidade. “Não, foi ela mesma, Tri.” disse Júlia. “Pode não parecer, mas ela super respeita a minha erudição.”

“É a nossa erudição, né?” Carla completa, com uma mordiscada no pescoço dela.

“E vão ser as gêmeas mesmo?” pergunta Astrid.

“Claro, né?” exclama Carla. Júlia toma mais um gole e acrescenta:

“Não tinha como, elas já completam as frases uma da outra desde a fase das tornozeleiras.”

“Que coisa…” diz Valentina.

“...mais deliciosa!” diz Astrid. As duas sorrindo maliciosamente.

“E elas são uma delícia mesmo! Deusa do Céu!” Júlia fecha os olhos e estala os lábios.

“Iguaizinhas, com aquelas carinhas de gueixas!” concorda Carla. “Não consegui acreditar quando elas deram pra trás, por um tempo, no mês passado.”

“Definharam a olhos vistos.” explicou Júlia. “Ficaram quase uma semana separadas.”

“Gente,” falou Valentina, no meio de um gole, “pra que isso?”

“Ouvimos dizer que foi influência da família?” perguntou Astrid.

“Affe!” Carla revira os olhos. “Aquelas tias delas. Vão morrer caquéticas, cada uma sozinha em algum cubículo, podem apostar.”

“Olha só que venenosa!” Valentina piscou e brindou. “Adorei, miga, te gosto assim!”

“Como sabe que não foi a Júlia falando pela minha boca?” Carla brinca.

“Porque te conheço.” Valentina mostra a língua.

“Eu joguei um feitiço nelas.” Júlia comenta distraidamente, sorrindo com a taça na frente do rosto.

Pausa geral.

“Tá zoando?!” ambas exclamam.

“Tô.” ela responde. “Sou historiadora, não bruxa.”

Elas riem e aproveitam a deixa para largar a mesa com os restos de fondue para trás, e se mudam para o seu cantinho favorito, no carpete da sala. Mas não sem antes rolar a famosa discussão para que Júlia e Carla desencanem da louça na pia, e deixem para que Valentina e Astrid resolvam na tarde seguinte. Instaladas, alimentadas e já no grau etílico apropriado, elas se largam umas sobre as outras e, pouco a pouco, vão retomando a conversa.

“O mundo mudou tão rápido.” reflete Astrid, com a cabeça aninhada nos seios de Carla, “Nossas vidas antigas parecem tão longe, tão irreais.”

“Ao menos é um mundo bem melhor pra se viver para sempre, eu espero.” murmura Carla, brincando com os cabelos dela.

“Acredita nisso agora?” Valentina levanta a cabeça do pescoço de Júlia para fitar Carla nos olhos.

“Aqui, com vocês, sim.” ela declara, docemente, e estica o pescoço para dar um selinho na amiga. Astrid sorri, sentindo o beijo também.

“Não que não tenha lá suas esquisitices.” menciona Júlia. “Do tipo ruim, eu quero dizer.”

“Como assim?” pergunta Valentina.

“Os casos não consensuais, meio perturbadores.” explica Júlia.

“Ouvimos dizer.” diz Astrid. “Mas a gente ouve tanta coisa.”

“Ah, tem uma galera por aí que é bem louca, sim.” comenta Carla. “A moça dorme na festa, bêbada e acorda acorrentada numa desconhecida. Sem as chaves, claro.”

“Ou pior. Colada.” acrescenta Júlia.

“Deusa! Contra a vontade?” Astrid se impressiona.

“E com o meu adesivo!” Carla diz. “Tá cheio de clínicas clandestinas por aí. Pra atender uma galera que não está afim de passar por todo o processo, sabe?”

“Tá sempre chegando casos assim pra gente.” acrescenta Júlia. “Digo, pra Carla.”

“Pra gente.” Carla confirma, sorrindo pra ela. “Mas sim, galera obsessiva. Rola muito com adolescentes. São oito ou oitenta. Ou trocam de parzinho toda balada ou acham que tem que se unir para sempre com a menina que conheceram ontem.

“Foi isso que você quis dizer quando falou em primeira dupla a passar ‘oficialmente’ pela anastomose?” sacou Valentina.

Carla e Júlia se remexem ao mesmo tempo, se ajeitando melhor no carpete fofo. Valentina e Astrid se aninham mais junto delas, os oitos pés se esfregando voluptuosamente.

“Hmm…” murmura Carla. “Sim, infelizmente. Tá cheio de garotas por aí arrependidas. Que não podem mais se separar sem auxílio cirúrgico. Aí caem na nossa mão, né? Algumas até se odeiam.”

“Que horror…” exclama Astrid.

“...mas anastomosadas?” completa Valentina.

“Tenho quase certeza de que não existe essa palavra.” Carla comenta, fazendo careta. Júlia cai na gargalhada quando Valentina faz cócegas na barriga de Carla.

“Agora existe, sua tchonga!”

“Pára!” Carla ri, “Mas sim, o fornecimento de adesivo é fortemente regulado, claro, mas tem o mercado negro, né? Quem quer fazer merda, sempre dá um jeito. Ouviram falar da gêmea que está pleiteando a separação na justiça? Ela não queria se fundir à irmã (estava de olho numa amiga de infância, pelo que entendi), mas a irmã era tão obcecada que a convenceu. Sei lá como, tadinha! Aí usaram meu adesivo especial de anastomose! Ninguém sabe como conseguiriam! Agora uma quer se separar, e a outra não, alegando que a irmã, afinal, topou! E lá estão elas, grudadas pelos seios e esperando que as juízas tomem uma decisão.

“Mas em nenhum desses casos o par se tornou imortal, não é?” Astrid cravou.

Júlia só balança a cabeça negativamente, de um lado pro outro, com ar triunfante.

“As gêmeas gueixas vão!” clama Valentina.

“Ah, vão!” Júlia concorda, com veemência.

“Mas sem a menor dúvida que vão!” contribui Astrid.

Rola uma pausa, enquanto as três vão se virando na direção de Carla, que dá um sorriso e finaliza, categórica:

“Sim. Elas vão!”

As quatro bradam, escandalosamente, abraçando-se e enroscando-se num emaranhado de braços de pernas, se levantando, ainda num nó, para alcançar as taças e se servirem com mais vinho.

“É isso aí, miga!” grita Valentina, agarrando o rosto de Carla e apertando-o junto ao seu. “Assume essa fé! Se eu posso, você pode!”

“Pra vocês eu assumo tudo!” ela afirma, dando um chupão estralado, primeiro em Valentina, depois em Astrid. “As loucas siamesas…”

“…que mudaram nossas vidas!” completa Júlia, entrando de sola no beijo quádruplo.

“As gueixas vão ser só o começo.” Astrid consegue dizer, depois de tomar um fôlego.

“Ah, sim!” confirma Clara. “Tenho certeza que sim.”

“Imagina só?” gargalha Valentina, “Uma montão de criaturas duplas bizarras como nós?”

“Admirável mundo novo, que possui pessoas assim.” Júlia cita, divagando, “Só que sem a ironia.” completa, com uma piscadela.

“Sim,” medita Carla, “e aos poucos vamos aprendendo a lidar com ele… com seus novos problemas e contradições.” Olhou, serena e apaixonadamente para cada uma delas. “Todas nós. Conforme as coisas forem rolando.”

“Teremos muito tempo pra isso.” comenta Astrid.

“Hmm…” viaja Valentina. “Adoraria conhecer essas gueixas.”

“Mas você não perde tempo, né?!” ralha Carla, dando um tapa na bunda dela. “E você não faz nada, Tri?!”

“Como é que sabe que não fui eu que falei?” sorri Astrid.

Carla escancara a boca, fazendo cara de escandalizada, e, de repente, solta: “Ela te pegou nessa!”, estremece e se vira, “Júlia! Sacanagem!”

“Não resisti!” ela gargalha.

“Agora,” diz Astrid, com ar mais sério. “essa sou eu falando. Mas claro que também falo em nome da Val,” elas cruzam o olhar, enquanto Astrid estende os braços, abraçando todas as três. “Amo vocês, e é um privilégio passar a eternidade ao seu lado.”

Elas se abraçam, com lágrimas nos olhos, lembrando de toda a loucura que as levara até ali, naquele ninho aconchegante, cercadas de arte, velinhas coloridas e gatas adormecidas. E não seria maravilhoso se isso pudesse mesmo continuar para sempre?

“Bom…” retoma Valentina, enxugando as lágrimas e abrindo um sorrisinho malicioso, “E aí? Vamos pra cama? Tem cordas de shibari no quarto, pra gente se amarrar as quatro juntas.”



 

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