October 18, 2012

Ata-me!

9 comments:
Essa é uma postagem muito especial para esse blog: a primeira na qual a temática do togetherness surge expressa na forma de literatura. O belíssimo conto "Ata-me!" é uma cortesia da escritora e blogueira oh-baby-coffee! que, recentemente, tornou-se não apenas uma visitante assídua e apaixonada em seus comentários (colocando minha vaidadezinha na estratosfera) como também uma interlocutora instigante para acalorados (e nada superficiais) debates sobre o fetichismo e seus desdobramentos. O conto e a imagem criada em simbiose com o mesmo pela designer Marcella Galvão, formam uma pérola da mais doce e necessária melancolia. Agradeço com carinho às autoras pela oportunidade de reproduzir tal beleza no meu pequeno espaço.


Ata-me!
por oh-baby-coffee!
Imagem: Marcella Galvão 

{ Ficção inspirada nela. Ou um conto, o meu segundo. }
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As cordas vieram aos poucos, como fios de cabelo branco que vêm com o passar dos anos – só que estas, imperceptíveis aos outros, vinham de dentro. De dentro dela. Ela, que não era velha, pelo contrário: era apenas uma garota. Em seus 21 anos, metida com design. Mas uma a uma, as cordas lhe preencheram o interior. Como se fosse natural, alguma inevitabilidade biológica. E desde então, quando andava por aí, elas flutuavam – sem escolha – ao seu redor. Eram invisíveis, milhares delas. Só a menina as percebia, mas não conseguia livrar-se...

...estavam presas, por uma das extremidades, às paredes do seu interior. Enquanto isso, a ponta oposta pairava do lado de fora, solta no ar. Se chegassem perto o suficiente, mesmo sem que a menina o quisesse, as suas cordas tocavam os corpos dos passantes. Não esbarravam, não eram sentidas. Sequer faziam cócegas – apenas encostavam as suas pontas neles, suaves, e aí os deixavam passar, calçada adiante. Escorregavam por aí, pelos outros, totalmente transparentes e transgressíveis, quase inexistentes.

Por dentro, no entanto, elas lhe cutucavam. Como pequenos transes, às vezes intensos, em pontos bastante específicos das suas paredes internas. Na base da corda. Ahh! Preferiria levar um choque a sentir, um atrás do outro, tais transes invisíveis em sua cabeça. Imprevisíveis, pareciam apenas piorar com o passar do tempo. E foi então que ela começou a sentir uma necessidade estranha; uma vontade irremediável, e esquisita, de amarrá-las. As suas cordas. Porque elas, assim tão soltas, lhe incomodavam. As trombadas, por sua vez, ficavam cada vez mais fora de seu controle. Os vai-e-véns incessantes afetavam-na de todos os lados. 

Por vezes, em agonia, acreditava cegamente que a única solução era não deixar que se aproximassem. Ninguém, nunca mais. Ficar sozinha evitaria os seus transes interiores, claro; mas sentiria falta das pessoas. Ela sabia. E voltava, então, às mesmas calçadas lotadas. Todo dia. Retornava cheia de pontas soltas às baladas, às ruas de São Paulo. E se deixava levar, em transe constante, mas incômoda. Completamente desatada. 

Até que conheceu uma garota, uma garota capaz de pressentir cada uma das suas cordas. De vê-las como ninguém nunca as viu. E aquilo lhe encheu, de repente, de um desespero cheio de novas inseguranças. A garota atiçava-as, todas elas, e ao mesmo tempo. De alguma forma podia sentir, desgraçada, sob os dedos a uma distância próxima, a eletricidade que emanava das suas pontas ultrasensíveis. Indução eletrostática¹. Aproximou-os mais. Pois gostava de senti-la assim, carregada de uma energia nunca antes disparada. Como as cordas tensionadas de um instrumento, esperando para liberar sons díspares e estridentes. 

Deliberadamente, então, passou a mão por entre aquele emaranhado invisível; percorreu-o como que por mera casualidade, tocando todas elas de uma só vez. Desta, de propósito. E a menina entrou em transe exponencial, com uma intensidade abrupta, inevitável, perdendo o fôlego. Era quase dolorido, senti-las densas, vibrando com o passar de dedos alheios. Aí a garota enrolou-as sinuosamente no punho, forçando-as juntas, curvilíneas; depois deu mais uma volta ao redor da sua palma macia – a garota em transe sentia as suas cordas esbarrarem contra a pele da outra, e umas nas outras, e todas ao mesmo tempo – e então fechou a mão, apertou os dedos, segurando-as forte, para si. Todas as teclas de um piano pressionadas de uma só vez, o timbre a ensurdecia. Esticaram-se, tensionaram-se. Tendendo para a sua direção. E a menina foi tomada por um sentimento violento que se expandia, arrebentava todas as suas barreiras de repente frágeis. Sentiu o seu coração acelerar ao máximo e aí parar. [Tum!] 

Por um instante... completamente inebriada.

E quando soltou, as suas cordas restavam frouxas, corroídas. Desgastadas pela descarga de energia. Arruinadas para sempre. Viciadas na eletricidade irrequieta que a outra garota disparava nela. Passava os dias agora contando as horas, ansiando por instantes como aquele, convulsivos. As suas cordas já não incomodavam mais ao esbarrar, moles e sem vida, pelos outros na calçada. Não – o incômodo agora era outro. Profundo, denso, cerda por cerda de uma saudade doída, horrível. Ao mesmo tempo, porém, repudiava-a. Com toda a sua força. Recusava-a toda vez, segundos antes de se encontrarem; relutava consigo. Pois temia, de um jeito realmente aterrorizante, um dia não ser capaz de suportar. As suas cordas vibravam, estrondeadas, em absoluto frenesi. E ela, a garota, a tocava completamente consciente do delírio que lhe causava. 

Tentou, tentou de tudo. Lutava contra. E os seus encontros se tornavam cada vez mais como choques, choques mútuos – enquanto, na verdade, debatia consigo mesma. Aí perdia a cabeça, ganhava hematomas e roxos bonitos, admiráveis. Certa vez, até, amarrou-a à flor da pele; as pontas das suas cordas envolveram os pulsos da outra, firmes, e amarram-na violentamente contra a cama. Prendeu-a pela cintura, determinada, apertou as amarras nas suas coxas, atou seus joelhos; sentia um desespero em não deixá-la ir, não deixá-la soltar de si. Porque uma vez que o contato, a tensão entre elas, se cessava; ela afrouxava. E aí sentia-se mais uma vez desgasta, corroída. As suas cordas arrastavam-se pelo chão; caíam largadas pelos cantos, moles.  

Queria se livrar daquela inconstância, da distância entre elas – ou, ao menos, da percepção agonizante que tinha da mesma. Esperou encontrá-la mais uma vez e aí engoliu o seu orgulho, lhe implorou. Implorou e implorou, no seu ouvido, em transe absoluto; sentia as suas cordas frenéticas, à mercê das mãos cerradas da garota, enlaçando-as. Ata-me! As lágrimas escorriam dos seus olhos, desesperadas. Pois, hoje, ela não seria capaz de suportar. O seu peito começava a doer de uma plenitude extravasada. Ata-me a você ou arranca-as de mim! Arranca-as! (...) A outra garota puxou-as subitamente com as mãos, na sua direção. E as cordas invadiram o seu peito intacto, por vontade própria, dilaceraram a sua carne, a perfuraram cada vez mais fundo, intrometidas. 

Transgrediram-na, sem que o esperasse. E envolveram o órgão bruto, atrevido que pulsava involuntariamente dentro dela, entre os seus músculos e sangue; mantendo-a viva. Apertaram-no, cada vez mais e mais, sufocando o seu redor. Mas não morreu, não ia ceder tão fácil; apenas perdeu uma batida ou duas. O fôlego. Até voltar, com toda a força – numa transe mútua e acelerada, absurda. Numa sinergia violenta, invasiva. Não conseguiria mais se livrar e nem o queria. Por mais longe que fosse; por mais que tentasse, em carne viva, se desatar da menina das cordas... agora, ela era sua.
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¹Chama-se de “indução eletrostática” o fenômeno no qual um condutor se eletriza pela simples aproximação de um outro já eletrizado.

October 9, 2012

Self as Shellfish

3 comments:
Mais uma bela variação do inesgotável tema das irmãs siamesas, dessa vez no traço forte e expressivo do artista americano Vin Ganapathy. Encontrada originalmente no site Indiesart.com.


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